a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/03/2015

Ao lado da chávena vazia


Através da janela estou mesmo a ver que a árvore tem mais flores que ontem. São brancas e estão todas a olhar para mim.

Na lareira ardem os toros de lenha que vieram no inverno e o fogo nunca está quieto. Tentei fotografá-lo um dia, mas este plasma dançante não se deixa apanhar.

Abro a porta envidraçada e saio para o terraço onde numa noite de verão ouvi os javalis e a lua não apareceu.

Sento-me e tomo o chá sem ti, como combinámos. Não está frio e ouvem-se todos os pássaros. Eles sabem de certeza que o sol desceu com muito jeitinho durante o equinócio, em fascículos pequeninos, e se deitou em cada pétala de muita flor, olha ali. Também já foi plasma dançante, este, que é estelar; agora fixou-se para mim e para ti na risca do amarelo. Não está vento.

A leitura de Dostoievski tempera-me os neurónios com especiarias irresistíveis e está a mudar a pessoa que fui. Talvez até não volte a escrever. Nem sequer sei se isto é escrever. São débitos prováveis de espasmos primaveris, convulsões tolas vindas de dias vazios, passados, dias em que depositei a solidão do meu interior árido, um deserto. Entretanto apareceste, dir-me-ás. Porém, o chá tomo-o sem ti.

Direi então que não quero sujar de palavras soltas, desgarradas, mal cosidas, iguais, ocas, baças, frias, às vezes melosas, irritantes, palavras compradas à socapa na feira da candonga e metidas num saco de plástico velho, azul, trazidas para casa aos solavancos, palavras tristes como as minhas num mundo onde se lê Dostoievski. Demasiado belo. Nem sei se peça perdão em surdina, se saia de mansinho.

Mas por hoje ficarei aqui, siderada, sentada no terraço ao lado da chávena vazia, a ouvir os pássaros, a contar as flores brancas que chamaram por mim e a sonhar sem ti.

Que pena ter nascido tão tarde.
  
(antigamente fazia um vistão a recusar sacos de plástico nas livrarias por causa do ambiente, hoje faço figura de fuinha, sempre são três cêntimos que eles custam na Bertrand e isto há que dizê-lo)

10 comentários:

  1. Eu também vejo (pelos teus olhos, que da minha janela não vejo flores) que hoje está mais florido que ontem.
    Nascem tarde algumas flores, mas ainda assim, nascem, e enquanto duram, ainda que perenes, vivem.
    E enquanto há vida há esperança.

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    1. A tua janela não precisa de te mostrar as flores, tu conseguirás sempre vê-las, Uva. Os teus olhos vêem longe. :-)
      Boa semana.

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  2. Sentada no terraço ao lado da chávena que já esteve cheia, ouvir os pássaros e contar as flores sejam elas de que cor forem, Susana, seja sozinha ou acompanhada, é de continuar a sonhar, sim. E de voltar a encher a chávena!

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    1. Uma vez ouvi alguém dizer, no rádio, que os portugueses sonham pouco. Não estou de acordo, acho que há muito quem sonhe demais. :-)
      E, com a chávena cheia, desejo-te uma boa semana.

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  3. Mais uma vez, estão aqui muitas pontas por onde se pegue, escolhi esta...tenho cá para mim, que Dostoievski não ia gostar nada de estar a contribuir para que alguém desatasse a desconsiderar a sua própria escrita só porque o está a ler. "No meu O Idiota" diz-se que Dostoievski era pela liberdade. Não me parece que alguém que prezava a liberdade fosse gostar que se abafassem em sacos de plástico, palavras que gostam de andar à solta. Talvez sempre seja de pedir perdão sim Susana, mas é por essa ideia que te passou pela cabeça de calares as tuas palavras escritas.

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  4. Acho que tens razão quanto às ideias de Dostoievski. Eu não calarei as palavras escritas, elas é que talvez se calem sozinhas. :-)
    (os teus comentários parecem posts de tão ricos que são, obrigada)
    Boa semana, Cláudia.

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  5. Vozes do subterrâneo da Susana.
    Essas palavras são para voar irrevogáveis como o vento. Está bem? :)

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    1. Mas um subterrâneo onde toca música clássica e há primavera :-)
      Está bem, pronto, está bem.

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  6. Um dia a chávena estará cheia, quente, irá aquecer-te os dias, as mãos e o coração.

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