a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

04/03/2015

Tapete rolante que todos conhecemos

Na próxima quinta-feira vou comprar o jornal Público. Em papel.

Hoje, que desde manhã tem sido terça, uma terça triste, fui almoçar ao centro comercial. No átrio onde estava a caixa multibanco de que me servi, apanhei em cheio com um cheiro doce e morno, era o mesmo cheiro do apartamento que tínhamos em Barcelona no Verão em que o Chiado se incendiou. Foi lá que lemos a notícia no jornal. Lembro-me de estar deitada na praia de Castelldefels, debaixo do chapéu de sol, a ler que a cidade branca - estava assim Lisboa referida - estava em chamas. A minha irmã mais velha andava a ler “Cem Anos de Solidão” do Gabriel García Márquez, o livro estava ali ao lado do jornal, vejo-o daqui. Por trás de nós, nesse final de tarde, como em quase todos os desse Agosto, os peixes saltavam na água que não tem maré. Nunca mais, desde então, tinha encontrado o cheiro catalão daquele apartamento. Por isso, deixei-me estar no átrio do centro comercial a aspirar as memórias. Foi o melhor momento do dia.

Ao fim da tarde parei no supermercado um bocadinho antes de começar a aula de dança. Meti nos minutos que me faltavam dois pães, oito iogurtes naturais, muitas maçãs, talvez onze maçãs, compro sempre número ímpar de maçãs, dois litros de leite do dia e nenhumas bananas, falhou-me a lista com as bananas. Já na caixa, vejo à minha frente um homem novo baixar-se para retirar as coisas do seu cesto a fim de as colocar no tapete rolante que todos conhecemos e vejo a camisola dele subir e as calças descerem. Não gosto de ver pessoas exporem-se assim, novas ou velhas, portanto olhei para a revista que estava no escaparate a descair para a direita, as revistas nunca se aguentam bem nos escaparates, e li que a actriz de novelas que morreu recentemente aos quarenta anos, se suicidou por causa da violência doméstica. Concentrei-me para não deixar o nó da garganta passar às lágrimas, que têm andado perto, olhei para o rosto dela, achei-o tão bonito, acho sempre que as pessoas bonitas são felizes só por serem bonitas, mas não é verdade.

À noite, antes de ir para a cama, a minha filha perguntou-me se estou triste. Não lhe menti. E disse-lhe também que as pessoas bonitas nem sempre são felizes.

A quarta-feira já chegou. Amanhã vou comprar o jornal Público. Em papel. Talvez seja o melhor momento do dia.

14 comentários:

  1. Costuma dizer-se, que quem vê caras não vê corações, então, às vezes somos uns privilegiados, porque podemos "ver" como é um coração, sem estarmos distraídos com a cara e por isso, dá para perceber, que aqui, de voz à solta, mora uma pessoa muito bonita, pelo que escreve e pela forma como procede a comentar fora daqui :). E, sim, as pessoas bonitas, principalmente, as de coração bonito, deviam ser felizes sempre, devia ser obrigatório, devia haver uma lei ou assim, mas parece e isto é válido para todos, que só temos direito a momentos da tão desejada felicidade e que ela (a felicidade) está nas coisas simples, como por exemplo, a compra e a leitura do nosso jornal. Bons pedacinhos de felicidade Susana. :)

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    1. Cláudia, agora prende-se-me a voz para responder a este comentário...
      Muito obrigada!
      Mas olha, como dizia Hermann Hesse (cito-o muitas vezes), vemos nos outros o que há em nós.
      E sim, a felicidade é mais fácil construir primeiro pelas coisas pequenas, ajudam a chegar às grandes.
      Bons pedacinhos de felicidade para ti também. :-)

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  2. Confesso que fiquei curiosa sobre o que sairá amanhã no Público.

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    1. Ah, mas eu satisfaço já a tua curiosidade! Amanhã o Público vai ter um director novo, por um dia: o nosso João Magueijo! Físico teórico, cosmólogo, professor no Imperial College. E eu gosto muito destas coisas da Física (são assim como uma bicicleta para mim, estás a ver?)
      Beijo e bem-vinda!

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  3. E lá está Magueijo, com a lucidez irreverente que é a marca de água dele: "O universo dá-me uma enorme trabalheira, é uma estopada, não deixa grande tempo para fazer outras coisas. Não admira que tanta gente deixe os mesteres cósmicos para a religião, Deus que se amanhe."
    Bela edição comemorativa -- e se não fosse este blog, talvez tivesse mesmo deixado passar a versão em papel.

    Boa tarde, cara Susana :)

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    1. É realmente, uma maravilha ler o que ele escreve. Até me admiro que um físico teórico escreva tão bem.
      (mas não acredito que o amigo Xilre tenha sabido deste evento do Público pelo meu blogue, caramba...isso seria demais uma lisonja!)

      Boa noite, Xilre! :-)

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  4. O meu Público estava reservado, escondido debaixo do balcão, que hoje era gratuito e havia fila para obtê-lo. É um hábito antigo, dar-lhe uma vista de olhos pela manhã e guardar o que interessa mais para a noite.
    (a violência devia ser banida)

    Beijos, Susaninha! :)

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    1. Isso é o que são privilégios, Maria! Eu tive de esgrimir pelo meu exemplar. Ia preparada para comprar dois, não fosse alguém pedir-mo emprestado e pimbas, como já aconteceu com tantos livros e CD's, e não podendo comprar fiquei envergonhada de trazer dois. Portanto, não empresto o meu a ninguém, é isso. :-)
      (pois devia, minha querida amiga)

      Beijos, Maria :-)

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  5. Os jornais no que têm de realidade fazem-me mal. Deixei de ter prazer de conviver quer com um quer com outro já há algum tempo.

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    1. Acho que o melhor a fazer é criarmos a nossa realidade, à nossa medida. O resto, então, perde nitidez. Mas isto só se for possível, claro!
      Compreendo perfeitamente, Luís. E bem-vindo!
      (Isso do Quirguistão é verdade?)

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  6. Criar uma realidade à nossa medida não é má ideia. Quais são os ingredientes que recomendas? Os que uso são mais são à base de tinto e ponte de amarante, mas aceito alternativas.

    Quirguistão? Claro que é verdade, mas com K e menos vogais.

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    1. Eu até pensava que era algo assim do tipo Kirziquistão, mas fui ver ao teu perfil e copiei de lá.
      Se aí houvesse verão, eu propunha-te um Prova Régia branco ou mesmo um JP também branco, ambos muito em conta e com uvinha moscatel que escorrega tão bem. Agora estando aí... sei lá. Vodka?
      (e o que se faz aí no Kirquistão ou lá o que é? )

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  7. ando à procura do universo


    tens algum?

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    1. Andar à procura do universo parece-me uma excelente forma de vida.
      Eu tenho um, sim. É feito de pedacinhos pequenos, vou colhendo um aqui outro ali. Como os "quanta" no universo grande. :-)
      Desejo-te sorte.

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