a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/06/2015

Há frango de carne

Bati os pés nos restos de capacho à entrada do café Ernestina. Na mão levo o dinheiro certo para o pagamento do serviço que o senhor Armando prestou ao nosso jardim. Já conheço os habituais fregueses, três ou quatro homens que ali afogam uma solidão tão coçada que talvez já se tenha podido vestir de um hábito consolador ou então é a minha vontade que o faz. Como habitualmente, as vozes que atiravam palavras à vez para o ar interior, calaram-se para me ceder passagem, não fosse eu tropeçar nelas.
- Boa tarde senhor Armando, aqui tem o dinheiro.

Aproximo-me do balcão. Este café mais parece uma tasca, é o único estabelecimento comercial que se encontra em toda a extensão de três aldeias serranas, vizinhas e companheiras no mesmo abandono comungado pelos seus habitantes. Procuro o papel que da última vez vi, pendurado na parede, com a inscrição "há frango de carne". Queria fotografá-lo ou então perguntar à dona Ernestina porquê de carne e depois saciar a minha curiosidade. Mas no lugar dele apenas o cartaz das festas da região, que começam para julho. Enquanto durarem, a solidão ficará só, chutada para o alto pelas romarias, quedar-se-á pairando acima dos cumes dos montes, refém das garras das águias que fazem o verão ou será levada pelo vento e cortada às fatias nos geradores eólicos.
Não sei se por não haver aparelho de televisão emitindo os ruídos, enchimentos feitos à medida de solidões ainda mais fundas, das que vivem na cidade, ou por um motivo mais escondido, gosto de vir aqui.
Encostado ao balcão, está um homem que não conheço. Falta-lhe o braço esquerdo. À sua frente, dona Ernestina - a dona do café ao qual emprestou o nome próprio - tinha colocado algumas rodelas de chouriço em cima de um guardanapo, um papo-seco e um copo de vinho tinto, cheio até antes de entornar. O homem saca do canivete com a mão direita e abre-o empurrando-o contra a superfície lisa do balcão.
- Quer ajuda? - pergunta a dona Ernestina.
- Quer ajuda? - pergunto eu.
- Não, obrigado. Eu consigo - sorri e eu vejo que os seus olhos são verdes.
Canivete aberto é então pousado na superfície que o ajudou. Depois, a mesma mão direita pega no pão e entala-o de lado entre a barriga, que é saliente, e o balcão. Com o canivete, lançando golpes experientes que fazem o caminho, abre o pão ao meio. Eu observo e digo já está habituado.
- Já. São quinze anos... Descasco batatas, faço tudo. Mas demoro muito tempo - as palavras muito tempo levam mais vagar, fazem jus ao significado e os olhos verdes sorriem de novo (como se fossem felizes?).
Hesito se pergunto como foi, há quinze anos, que a vida lhe levou o braço esquerdo ou se volto ao frango de carne, dona Ernestina, mas porquê de carne?
- Venha cá tomar um cafezinho comigo - a voz da dona Ernestina interrompe-me a hesitação.
- Um cafezinho?...
- Sim, filha, venha, venha - e faz sinal para a seguir para a sala de dentro, que é de uso privado.
Não são muitas as pessoas que inesperadamente me convidam para um café fora de tradições ou cortesias e dentro da sua genuína vontade. Digo imediatamente que sim, faz-me feliz este convite e sigo pelo caminho indicado, intrigada por não ter arranjado uma desculpa, apesar de tudo.
Dando a volta ao balcão, vejo-o por dentro. Espreito para as suas entranhas ocultadas a quem está do outro lado, procuro qualquer coisa, uma resposta e é como se fosse eu, agora, por um segundo, a atender os fregueses que pedem vinho e rodelas de chouriço.

Mesmo assim, não consegui descobrir por que raio de motivo gosto eu de vir aqui.

8 comentários:

  1. Esta semana, o sítio onde almoço com alguma frequência, tinha, apregoado na ementa, "frango à passarinho". Também já encontrei, noutros locais, "frango à leitão". Nunca, mas deve ser falha minha, descortinei, "frango à sardinha", o que daria um jeitão por esta altura festiva em que a dita prata do mar se vende pelo preço da de lei. Ainda havemos de lá chegar, assim nos ajude o progresso. Esse, que transforma o frango em carne, há-de conseguir fazê-lo também em peixe. E será apenas o princípio...

    Boa noite, cara Susana :)

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    1. Caríssimo Xilre, "Frango à sardinha" é, evidentemente, frango de churrasco. Ora imagine lá ambas as metodologias da transformação dos bichos em coisa comestível... daí não ser costume mencionar-se essa variante muito óbvia.
      Frango à leitão já me parece coisa mais complexa, uma vez que tanto quanto sei (das visitas às montras das lojas da baixa lisboeta) os leitões têm normalmente uma laranja enfiada na boca, ora o frango talvez levasse com uma tangerina, o difícil seria manter-lhe a cabecita agarrada ao corpo para esse efeito (no entanto, desta vez é melhor não imaginar).

      Mas foi, como sempre, um excelente comentário (gostei muito da parte da prata do mar, que está com poesia, pois está).

      Boa noite, querido Xilre! :-)

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  2. Até o que não se explica pode fazer sentido.
    :)
    Beijos Susana

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    1. Pois pode, querida Just. E por vezes bem tentamos arranjar um sentido explicável às coisas inexplicáveis e nada. O melhor é.... nem sei o que é o melhor.
      Beijos de volta. :-)

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  3. Com o tempo vamos aprendendo que uma coisa pode ser verdadeira e falsa aos mesmo tempo, ou seja, ser e não ser em simultâneo :)

    Um beijinho, querida Susana

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    1. Como alguém dizia há pouco tempo (acho que foi o nosso Rentes de Carvalho), somos muitos homens dentro de um só (no nosso caso, mulheres, evidentemente) e elas nem sempre estão de acordo entre si. Uma trabalheira das grandes arrastar esta gente toda e manter silêncio na sala para podermos todas ouvir o verão a chegar.

      Outro beijinho, querida Miss Smile. :-)

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  4. Aqui está um frango de carne e osso... eis porque gosto de aqui vir.
    Um dia, quem sabe para breve, eu diga, leio o teu blogue e tenho Maria no nome.
    Bom dia, Susana!

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    1. Muito obrigada por gostares de aqui vir e mo dizeres assim. Esse foi um comentário maior que eu, querida Teresa.

      Boa noite :-)

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