a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/10/2015

No chão do comboio, em pé não dá

Caminho apressadamente em direção à estação e avisto a Jessica dirigindo-se a mim, vai intercetar-me, vai vai, e quando se acerca declara que se chama Jessica (por isso é que eu sei) e que está numa causa de proteção dos animais, se eu não quero, por acaso, toda ela sorrisos, tem coisas nas mãos, vai entrevistar-me ou sei lá eu… Jessica, não dá, estou quase a perder o comboio, declaração que faz com que ela se afaste sem tirar o sorriso, um aceno de mão, então boa viagem.

Mas desta vez o comboio vinha em duas prestações, divorciou-se pelo caminho, chegou ao oriente desorientado, desorientou-me e eu perdi mesmo a minha metade, onde é que já se viu um comboio não alinhar nos carris, deixar-se dividir assim e não sei quê, gosto sempre de ler e não sei quê. Fazia tenções, eu, de me sentar no meu lugar, recostar a cabeça e fechar os olhos antes de desatar a fazer qualquer coisa, a semana acabou e a dor no braço esqueceu-se de voltar depois do efeito do comprimido que tomei de manhã cedo para poder pegar ao trabalho em forma total sem falta.

Na plataforma, é que ainda estamos na plataforma, olho o relógio e vejo que o comboio se atrasou já dois minutos ou três, coisa inédita sem chuva forte, cantoneiras caídas, um elefante espojado na linha ou nevões incríveis, mas finalmente chega o alfa, há algo de másculo num comboio a chegar que eu não sei descrever mas há, e traz carruagens com números, estranhos, todos, ao  da carruagem indicada no meu bilhete. Acaba o comboio e a minha carruagem nada, então que é isto, corro à senhora fardada, senhora! senhora!, a minha carruagem não veio, onde está a minha carruagem? (confirmo pela quinta vez o número do comboio, o destino, a hora, os outros números, as referências, tudo tudo sem falhar nadinha). A sua carruagem estava no desdobramento, minha senhora – a minha senhora sou eu nesta cena - no quê?, no desdobramento, o que é isso? minha senhora não posso fazer nada, o seu comboio já partiu, era aquele que parou na linha seis, esse? mas esse tinha outro número, ia para outro destino, vá falar com o revisor. E eu fui a correr, bilhete no ar, antes que o comboio fuja, o revisor está rodeado de gente indignada de bilhetes brandidos no ar, em aflição, cadê as carruagens, mas isto mas aquilo, dois comboios com o mesmo número, toda a gente mas senhor mas senhor, uma festa de bilhetes no ar, patético e autêntico, o revisor tem os braços muitos grandes e tatuados e depois farta-se da malta toda de repente porque já disse quatro vezes que somos todos da metade desdobramento e não da metade normal, e a metade desdobramento já se foi embora, diz então, com um aceno tatuado no braço, vá, entrem, arranjem lugar se puderem, que o comboio vai cheio, se não vão em pé! Corremos todos às portas ainda abertas, ai jesus, entrei no resto de comboio (que não é a minha metade).
Eu, que não tenho jeito para arrancar pessoas dos seus lugares nos comboios e depois me refastelar à vontade, isso não tenho, encosto-me à parede ligeiramente côncava no extremo da carruagem em que estou, emprestada, e depois deslizo por ali abaixo, em pé não dá, já trabalhei hoje doze horas muitas delas em pé, vou sentada no chão do alfa pendular até coimbra e tenho muita sorte porque se me apetecer até sou capaz de ir deitada.

Portanto não posso contar nada do que se passa nas terras lusas que atravessamos, fazer um texto muito bonito, a lembrar as viagens na minha terra, à noite (já é de noite), mas mais moderno, claro, não posso.   

A meio deste post pendular um bocado enjoado (no chão o alfa enjoa mais) aparece o revisor das tatuagens e eu daqui estico o braço com o meu bilhete uma vez mais no ar e digo que vou reclamar e pedir o dinheiro de volta, ai vou. Ele que faço muito bem, faço faço, mas o que interessa é chegar a casa, não é, diz ele, lá isso é, penso eu, e depois acrescenta que as pessoas nunca reclamam, encolhe os ombros e desaparece comboio fora.

O que ele não sabe é que eu não sou as pessoas. Se fosse, teria escrito coimbra com letra maiúscula, como deve ser. E oriente. Mas como vinha enjoada, o post ficou assim na versão alfa. Pendular.

12 comentários:

  1. Querida Susaninha, fiquei com vontade de lhe pegar ao colo! Bom, melhor dizendo (que isto uma pessoa - lá está, as pessoas - não pode dizer tudo o que pensa na Internet), se pudesse, ter-lhe-ia dado boleia até coimbra com todo o gosto (por solidariedade também escrevi com minúscula). Nem precisaria de falar comigo. Poderia descansar, dormir no banco de trás, ouvir música ou, até, escrever um dos seus posts maravilhosos. Agora, viajar num chão pendular é que não. Faz bem em reclamar. É que não se admite.

    Um beijinho e bom fim de semana :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E bem me pegou ao colo, querida Miss Smile! Isso é que havia de ser uma boleia das boas, eu cá preferia conversar consigo o caminho todo... para ver se descobria o segredo de se ser assim tão doce e querida.
      Um beijinho e bom domingo.

      Eliminar
  2. Ele, o revisor, está enganado. Há pessoas a reclamar. O que não há é pessoas a receber resposta às reclamações. No dia 9 de Outubro enviei uma carta em correio registado, a uma autarquia, a pedir esclarecimentos sobre um espectáculo que não se realizou. Até agora, népia. Ainda ninguém leu uma dezena de linhas? Pois bem, se nada vier dentro de dias, registarei em livro de reclamações.
    Em quase trinta anos de viagens diárias de comboio e com menos meios, teria tantos insólitos para contar... E mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, tenho uma relação visceral com os pouca-terra aqui mesmo colados a mim.
    Beijo e bom domingo, Susana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também sou fã incondicional dos pouca-terra, Isabel. Que normalmente funcionam tão bem. A reclamação que fiz à CP no verão por causa das janelas grafitadas foi respondida, E esta creio que também será.
      Mas o episódio de ontem admirou-me imenso. Foi mesmo coisa mal feita.
      Beijo e bom domingo, Isabel.

      Eliminar
  3. Ai, eu a ler e a correr também pela plataforma. Senti-me de mão no ar, assim com um bilhete a abanar. E verdade, verdadinha, que quase fiquei também enjoadinha.

    Gosto sempre de ler estas aventuras/desventuras do dia a dia. :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E eu gosto sempre tanto de ler os teus comentários, luísa. Mesmo que não façam rimas... :-)

      Eliminar
  4. Ganhámos nós, que fizemos sentados esta viagem contigo. Boa semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ah, Cuca, quem ganha sou eu de saber que enquanto escrevo o post no chão do comboio, alguém o vai ler. :-)
      Boa semana para ti também.

      Eliminar
  5. Querida Susana, estava a ler-te e a visualizar a sequência lamentável de acontecimentos. É de facto falta de respeito pl' "as pessoas" no geral, que depois seguem as suas vidas e vão andando, sem mais se lembrarem de reclamar, e eles parecem saber muito bem disso. Apetece-me dizer que em Portugal este tipo de situações...pronto já sabemos todos como é, estão sempre pendentes, "pendulares", como bem disseste. Boa semana. Vou viajar (não de comboio...) e mal chegue aqui me terás de novo, a deleitar-me com a tua escrita.
    Um beijo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida Teresa, espero que estejas melhor e que faças uma boa viagem.
      De facto esta situação admirou-me muito, porque os comboios sempre foram para mim um transporte exemplar e a preferir a muitos outros (e continuam a ser). Como cidadãos creio que temos o dever de reclamar para que o serviço realmente melhore. Para toda a gente.

      Obrigada :-) e um beijo de volta.

      Eliminar
  6. Respostas
    1. Mesmo (mas eu reclamei, pedi o dinheiro de volta, aguardo resposta).
      Outro beijinho, Gábi.

      Eliminar