a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

27/10/2015

Post para apreciar quem puder, tem música

- Ô doutora, 'inda taí? Não vai buzcar oz miúdoz, não?

Dona Rita entrou na minha sala com uma coisa à qual as senhoras da limpeza apreciam chamar o franjinhas e deve ter mais vontade de ver a sala vazia do que eu lá dentro.

- As minhas filhas já são grandes, dona Rita.

Dona Rita é brasileira, o sotaque está reproduzido da melhor forma que encontrei no teclado.

- Grandjizz? Como grandjizz, doutora? Olha essa foto aí!

Dona Rita aponta para uma foto pregada na parede na qual se veem duas meninas (e não miúdos, não sei onde ela foi buscar a ideia de miúdos), uma mais alta que a outra, estão de mão dada e a pequenina tem meia bolacha maria na mão, são as minhas filhas há uns catorze anos atrás, lindas.

- Olhe aqui dona Rita, venha ver.

Convido-os, à dona Rita e ao franjinhas, a dar a volta à secretária e porem-se ao meu lado; no ecrã do computador já se podem apreciar as minhas doces filhas, ambas sorridentes e em versão muito recente.

- Iiiii dotoura, qui grandjizz!

- E lindas, dona Rita.

- Sim, são lindazz az mininas, ólha só! Mas porque a doutora não muda a foto da paredji?

A dona Rita chama-me doutora.

- Não sei, gosto dela... (e gosto mesmo muito, aprecio-a imenso).

Entretanto já dona Rita começou a passear o tal franjinhas por todo o espaço, apanhando poeiras e - bolas, vou ter de dizer - cabelos.

- Ô doutora...

- Diga dona Rita...

- A siôra sabe como faiz para não cair o cabelo, não sabe?  

- Não... (detesto estas conversas, eu prefiro ser perfeita e não me cair cabelo nenhum ou, se cair, que ninguém veja)

Agora o cabo do franjinhas fica por um pedaço metido debaixo do braço de dona Rita, que ela precisa das duas mãos para explicar o fenómeno.

- Doutora, a gentji lá no Brasiú faiz tudo assim, viu? A siôra pega numa daiz pílula, sabe aiz pílula para nóiz não ficá grávida?

- Sei... (agora já estou mesmo a detestar)

- Entâo, a siôra ismaga um comprimido dêssiz e miztura com o shampoo, viu? Depois aplica e vai vê! O cabelo fica fortjinho e bom, qui dói! E não cai! É qui essas coisa da Dercoz e táu, isso é tudo muito caro, viu? Ah, não dá! Vai, experimenta como nóiz faiz no Brasiú.

É claro que não vou experimentar nada disso, principalmente porque não preciso, viu, dona Rita? Não sou perfeita não, mas o meu cabelo chega-me muito bem e se cai é devido aos esforços intelectuais muito importantes durante os quais alguns fios se separam de mim de cansados que ficam os pobrezinhos.

Mas pronto, isto eu não disse à dona Rita, ela é mulher que eu aprecio (hoje é o dia de apreciar) e sai já porquê, uma, ela diz bom dia todas as manhãs cheia de uma alegria contagiante que eu às vezes absorvo mais do que penso precisar e, duas, porque adoro ouvi-la falar, o sotaque brasileiro é música, soa tão bem.

Mas e o meu cabelo? Pelo sim pelo não, fui ao cabeleireiro, dei uma ajeitada, coisa de nada, dona Rita não vai notar não (aperfeiçoo-me muito assim, às escondidas, aprecio isso).

12 comentários:

  1. às escondidas, pois, li o post, um bocadinho frio, mas cabeludo!
    Boa noite, viu?

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    1. Este foi servido frio, pois foi. Também não se pode sempre aquecer os posts, não é?
      'Tou adorando esse seu jeito, viu, Teresa?

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  2. Ai, Susana, Susana, bom dia! Isto está mais do que perfeito! A tua escrita tem o inegável poder de me transportar para dentro dela... e depois já não sei se sou eu, se é ela ou se és tu que tenho aqui à minha frente!
    Beijinho e um óptimo dia p'raí!
    Carla

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    1. Querida Carla, que bom ver-te. :-) Muito obrigada pelas tuas palavras. Transportaste-me para dentro de um sorriso no coração.
      Um beijinho e uma boa noite para aí também.

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    1. E que bom é ver-te por aqui, GM! :-)

      Um abraço de boas vindas, dos grandes.

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  4. Tratamentos com pílula e para a queda do cabelo desconhecia, mas acho provável que resulte.
    É que há um tempo, e por problema diferente no cabelo, fiz um tratamento de choque com a aplicação de aspirina diluída. Penso que qualquer cabeleireiro sabe dessas vantagens... Não podem é fazer esses tratamentos no estabelecimento.
    Um beijo, Susana.

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    1. A minha avó que sabia tudo sobre beleza e etiqueta (ou quase tudo) punha cerveja preta no cabelo... mas eu nunca experimentei. Aspirina não sabia... um dia destes perco a cabeça e faço um cocktail... para não perder cabelo. :-)
      Outro beijo, Isabel.

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  5. Eu também gosto desse sotaque tropical, doce e macio que, dessa outra margem atlântica, me faz cócegas nos ouvidos, como um samba dolente. Gostei destas palavras entrelaçadas num belo texto que espero que a Dona Rita não varra :)

    Um beijinho, querida Susaninha

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    1. Bem, a dona Rita não varreu as palavras, hoje quase nem varreu nada, já me foi dizendo que... enfim... perguntou-me se fiz o tratamento, dado os progressos revelados pelo meu chão. :-)
      Ah, querida Miss Smile, as minhas palavras é que gostam de si! Um beijinho.

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  6. Susana, vou destacar: "(aperfeiçoo-me muito assim, às escondidas, aprecio isso)" (também gosto de aparecer na minha melhor versão, por fora e por "dentro". E de me aperfeiçoar às escondidas. Acho que é uma questão de respeito, por mim, e também pelos outros. Que é lá isso agora de andarem a dar conta, e a confrontarem assim uma pessoa com uma imperfeiçãozinha de nada, ainda para mais involuntária, hem? ;))

    Beijinhos, Susana.


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    1. Cláudia, tu apareces sempre numa excelente versão. Aqui e noutros lugares (virtuais) onde já nos cruzámos. Gosto tanto de te ler. :-)
      E para mais, tu compreendes-me.
      Beijinhos, Cláudia.

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