a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/02/2016

Nikolai Lugansky

Leite, iogurtes, pão, café, sacos para o lixo e mais algumas coisas aborrecidas. Dobro a lista de compras e meto-a no bolso de trás das calças com a promessa de que o final do dia chegará e hoje hei-de poder passar no supermercado. Antes de ir para o trabalho deixo a minha filha na paragem do autocarro e sigo o meu caminho na manhã de sol fresco, uma luz encantadora, é de aproveitar que o trajeto é curto e uma vez no trabalho acabou-se o sol e até pode ser que venham sombras. Mudo a estação de rádio de volta para a antena dois, não muito apreciada por qualquer uma de minhas doces filhas, mãe, que seca, põe aí na rfm, e oiço que hoje vai haver Rachmaninoff na Gulbenkian, e tinha logo de ser o concerto para piano número dois, ainda por cima Stravinsky também, portanto fiquei numa inquietação até me sentar ao computador e furar as regras da empresa que proíbem qualquer espreitadela por mínima que seja num sítio que não se relacione com trabalho. Vi que havia meia dúzia de lugares livres, salpicados pela plateia, mas eram horas da reunião e pensei que talvez ainda conseguisse angariar alguém para me acompanhar: sms à minha irmã passível de aderir e, mesmo antes de entrar na sala, compro dois ou só para mim?

Compra só para ti, enjoy. Mal a reunião acabou, furei as regras outra vez e fui à internet comprar o lugar vago na ponta da fila vinte e seis. Apesar dos meus esforços para chegar muito antes da hora, dei quatro voltas para estacionar o carro e quando já estava quase a chorar porque não me iriam deixar entrar depois de as portas fecharem (regra que aprovo mil por cento), os semáforos no vermelho, os minutos a voar, carros estacionados em todos os lugares, decidi rezar e então depois lá encontrei um buraco retangular onde entalei o carro entre um enorme bmw e um pequeno nissan. Esgueirei-me pela nesga de porta que consegui abrir sem abalroar o enorme bmw e corri rua abaixo, seis minutos para a hora, ainda precisei de visitar os lavabos devido aos nervos mas saí de lá dois minutos depois com o assunto resolvido, entrei na sala com as últimas pessoas, um alívio que me acompanhou mas só até eu encontrar o meu lugar ocupado (acontece-me muito): meu senhor, esse lugar, desculpe, que número tem? posso ver o seu bilhete? o senhor tira o bilhete do bolso e diz que o lugar dele não é aquele mas gosta mais daquele, se eu não me importo de trocar, por favor. Inclina a cabeça, franze a testa e diz-me como que em confidência é que eu quero raspar-me cedo (o lugar era na ponta, perto da porta), acedi, sou muito boazinha quando já venho de rastos, trocámos os bilhetes, sofri para ver o minúsculo número no bilhete dele à luz que começava a apagar, ainda não me lembro sempre de levar os óculos de ver ao perto para todo o lado e, finalmente, sentei-me. Dentro do bolso de trás das calças, comigo neste imenso concerto, a minha lista de compras.

(o pianista chama-se Nikolai Lugansky, regressou quatro vezes para agradecer o aplauso estrondoso e à quinta ofereceu-nos mais uma peça ao piano, só assim nos calou -- eu tenho vontade de dizer que este foi o melhor concerto da minha vida) 

25 comentários:

  1. estou completamente carcomido de inveja...

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    1. (somos dois... mas inveja da boa :)

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    2. Sempre gostei da palavra carcomido, Manel. Nesta tua aplicação, ajuda-nos a ver o que a flor viu: é uma inveja boa.
      :-)
      Bom fim de semana.

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    3. flor, pena eu não ter sabido ontem à noite que ia haver uma segunda sessão - hoje.
      :-)

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    4. hoje? hoje é dia de Vendredi dar à unha...
      :)

      beijinhos

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    5. diz lá à Vendredi que isto é para o fim de semana dela, sff, caso lhe apeteça, uma vez que parece ter ficado sozinha a bulir:

      https://www.youtube.com/watch?v=BOfHmRsxfoc

      (gosto tanto do que escreves, flor)

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    6. Vendredi agradece. é meio frustrada, mas é boa menina :)

      (retribuo, com sinceridade)

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  2. Querida Susana, o teu post é a parábola perfeita da busca do prazer. Não cai do céu. Temos de ser nós a lutar por ele, a tomar iniciativa, a enfrentar contratempos, engarrafamentos, até, enfim, percalços de toda a espécie. Mas, acima de tudo, temos de ser generosos e partilhá-lo com os outros, como tu fizeste com o senhor que se sentou no teu lugar. És um exemplo.

    Um beijinho, querida Susana

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    1. Querida Miss Smile, eu não contei tudo no post. O senhor, perante a minha hesitação, afiançou-me que eu ia ficar a ganhar com o lugar dele. E fiquei mesmo. :-)
      Outro beijinho, Miss Smile.

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  3. Respostas
    1. Às vezes a vida corre tão depressa que nos esquecemos destes programas bons, é verdade. Eu tive a sorte de andar há umas semanas apaixonada por este concerto e de repente ouvir que o iam tocar na Gulbenkian. :-)

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  4. Maravilhoso, Susana! Nem te digo quantas vezes já passei por situações dessas...estava a ver-me em ti, tudo igual, um nó no estômago e depois é a descontracção total. E o que a música nos faz, então esse concerto que é uma coisa do outro mundo, uma vaga enorme a subir numa longa praia onde caminhamos de pés descalços, enquanto nos lava a alma (a que eu nunca assisti ao vivo). Quem sabe um dia nos encontramos num concerto assim? Tenho pena que não tenha sido já neste :)

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    1. Acho que é a sensação de quase não merecermos o que queremos muito, não é? estocamos o braço e parece que repente o que desejamos fica fora do nosso alcance, mas no fim tudo se arranja (normalmente).
      Eu também tenho pena, Teresa. :-) (mas quando fores levas esse chapéu aí da foto para eu te reconhecer, levas?)

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    2. "estocar" o braço não sei o que é, claro. era esticá-lo que eu queria. (lá está.... às vezes fica fora do alcance aquilo que queremos...)

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    3. Combinado, levo o chapéu e as rosas. :)
      Também posso levar um letreiro a dizer: "Timóteo, não és homem não és nada se não avisares a Susana que eu estou aqui, terlim, terlim!"

      Beijinhos Susana, fico-me por aqui para não escrever mais tolices. :)

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    4. Minha querida Teresa, podes continuar a tentar, que ainda não foi desta que escreveste tolices. (estarei, prometo, atenta)
      :-)
      Bom resto de domingo e beijinhos de volta.

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  5. É por esse tipo de coisas, ou pela falta delas que viver na Província nem sempre é bom :) Bom fim de semana

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    1. Lá isso é verdade, GM. Na cidade andamos todos cinzentos com os tubos de escape e o stress e as buzinadelas, mas se de repente queremos ir ouvir Rachmaninoff, lá se vai o cinzento das nossas faces e retorna-nos o brilho aos olhos. :-)
      Bom resto de domingo.

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  6. Foi um concerto conquistado à unha. :)
    Normalmente são aqueles de que gostamos mais.

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    1. Eu sei que tu entendes isto, Cuca: uma das coisas mais belas a que se pode assistir é a harmonia de dezenas (talvez mais de cem) pessoas a tocar uma peça de música bem tocada, como se fossem todas um único ser transcendente. É tremendo, eu emociono-me muito.
      :-)

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  7. Até a lista de compras agradeceu, aposto. :)

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    1. :-)
      Eu até acho que devia ter sido a lista de compras mais feliz de toda a Lisboa (assumindo que não havia outra no Grande Auditório da Gulbenkian).

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  8. Há mimos que se conquistam e os melhores são os que nos oferecemos a nós próprios.

    Com tanta correria, até eu fiquei cansada! Mas já estou aqui a recuperar a ouvi-los, Rachmaninoff e Lugansky. :)

    Um beijinho

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    1. Tocas numa questão muito mais fundamental do que muitas vezes nos apercebemos, penso eu: dar mimos a nós próprios. Tenho dito a muitas pessoas que se sentem insatisfeitas com a vida que têm para pelo menos uma vez por semana (se não puder ser uma vez por dia) se darem um pouco de qualquer coisa de que gostem. Na maioria das vezes é possível e grátis.
      Espero que tenhas gostado da música, Princesa. Eu gostei de te receber aqui, bem-vinda! :-)
      Outro beijinho.

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    2. O concerto já conhecia, o pianista é que não.

      Obrigada! :)

      Bjs

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