a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/12/2016

O batom não transfere e a panela sumiu

O arranque frequente da bomba de água do prédio voltou ao espetro audível e eu não durmo mais. Cinco horas de sono não me chegam para o que eu quero, mas há o café. Levanto-me sem tonturas, faço subir manualmente o estore da janela e oiço os ruídos que as minhas filhas já disseminam pela casa. Vou fazer o café desejado, agora tenho escrito muito sobre café porque não posso escrever sobre chá, regresso à cama para o que me apraz desde que ficava em casa a aconchegar pneumonias, a ler e mais nada. Agora é mais o café. No rádio passa uma música perfeita que sei depois ser de Paganini, o livro cai-me que nem ginjas, está este um momento no topo dos momentos, quando me chega aos ouvidos uma discussão que vem da sala. As minhas filhas estão zangadas, uma fala alto, indignada, com a outra. Reconheço as vozes, a mais nova está mais acesa, a mais velha mais passiva. Não distingo uma palavra do que dizem, tenho sorte. Tento concentrar-me na leitura, mas a discussão diz que não. Sou mãe. O motivo é sempre o mesmo, uma camisola da outra que uma vestiu e as calças tu também vestiste e deixaste ali e eu queria as botas e tu tinhas levado as minhas botas e esse batom é meu, que não sai nem transfere e tem brilho mate mas pode ser glossy se quisermos, é assim que se zangam as minhas filhas. Que o batom não transfere aprendi esta semana, o que não é o mesmo que ser intransmissível, como se compreenderá, e que será mais do que suficiente, a intransmissibilidade do batom, para as vozes alteadas na sala.
Fecho o livro e vou tomar duche. Ouvi-las discutir é envelhecer mais depressa, é encurtar a vida (mas elas não sabem). No duche lembro-me que tenho de telefonar à minha irmã para lhe dizer que não posso levar a panela das couves para o natal em casa dela. A panela sumiu da arrecadação, talvez tenha tomado as rédeas à própria vida, era panela usada apenas nos natais dos anos pares por complexidades da minha imensa e vasta família, era panela para eu, bem dobradinha, caber dentro, e entre dois mil e catorze e dois mil e dezasseis sumiu-se a panela, ter-se-á fartado de conviver com bichos derivados de insetos no escuro, com móveis a morrer e a caixa da árvore de natal que essa sai nos anos pares e nos ímpares, com as bicicletas que nunca saem, com os restos de tinta de pintar os quartos, a tinta já secou e eu não sei como se deitam fora as tintas, e coisas assim. Tudo muito triste para uma panela. Fecho a torneira da água quente manualmente, pouso o telefone do chuveiro no apoio próprio, na minha família chama-se telefone àquilo e talvez esteja certo, e entra o silêncio na casa de banho. A discussão, que bom, lá terminou.

20 comentários:

  1. Sinuosamente delicioso, acompanhar-te assim e, o melhor de tudo, não te intrometeres (eu sei o quanto custa...) nas discussões delas (faço o mesmo, ainda que pudesse eu subir para a mesa da cozinha a gritar - "onde estão 3/4 do meu guarda-roupa?", mas seria mentira, pois provam-me que tenho gosto :)

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    1. alex, estou aqui estou a dizer-te que és adorável.

      mas opto para já por dizer que me agrada bastante a tua companhia.

      e imaginar-te em pé em cima da mesa da cozinha também... :-)

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  2. Gosto tanto de a ler, Susana :)
    Boas Festas.

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    1. E eu, Marta, gosto tanto que aqui venha! :-)

      Umas Boas Festas para si também e um abraço apertado.

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  3. Parafraseando o comentário anterior: eu gosto de lê-la. Sou-lhe grata pelos bons momentos que vivi consigo nesta folha digital que entre nós se interpõe e propõe e de alguma forma liga. Continue. Faz falta na blogosfera.
    Também detesto discussões e gritos. Mas essas por vezes até são engraçadas. "Não transfere", desconhecia o termo neste contexto. E até que não está mal:)

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    1. Grata pela sua companhia e sempre tão bons comentários estou eu, bea. E tem toda a razão, estas folhas digitais têm o condão de ligar as pessoas. Muito obrigada pelas suas palavras tão generosas.
      Um abraço apertado. E um Feliz Natal.

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  4. recebido o abraço em casa alheia - tão bom! - venho retribui-lo em sede própria :)

    um forte, forte abraço, doce Susana.

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    1. minha querida flor, que abraço tão bom digo eu, e retribuo com força também (mas sem amachucar essas pétalas perfumadas)!

      :-)

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  5. Para mim, este ano, assim inexplicavelmente, o que sumiu foi o espírito, o natalício, pelo que tenho ouvido é mal que está a afetar muita gente. Tenho esperança que um batom vermelho resolva a situação, portanto, neste caso, espero que transfira, que se uma pessoa com um batom vermelho fica pronta para conquistar o mundo, espero que ele, o batom, também tenha o poder de transferir o espírito natalício. Bolas! Preferia que tivesse sido uma panela a sumir, a sair das catacumbas dos dias que não são Natal e a ir à vida dela. Bem, mas acontece que ao contrário do espírito que se foi ou está apenas muito atrasado, está cá a vontade, e a vontade quis vir aqui desejar-te um Feliz Natal, é de vontade por ser de coração ou também poderia ter escrito que este Feliz Natal que espero que te aconteça é mesmo 100% vontade, 0% formalidade.

    Fica pois, aqui, um abraço, desta vez natalício.

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    1. A mim parece-me, Cláudia, que o espírito do Natal, aquele que é o bom espírito do Natal, o que deita sementes e faz germinar naturalmente, te acompanha sempre, todo o ano. Espírito que consegues, tu sim, transferir para quem te lê.

      Um abraço natalício de volta, bem apertado. :-)

      Feliz Natal, querida Cláudia.

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  6. Feliz Natal Susana
    e um beijinho natalício :)
    Gábi

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    1. Olá Gábi :-)

      Um Feliz Natal para ti também e para os teus, e obrigada.

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  7. como assim? os batons transferem, como?

    Feliz Natal, Susana!
    beijinho grande e horroroso :)

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    1. os batons transferem para toda e qualquer superfície onde pousem os lábios com eles pintados :-) mas não no caso deste novo batom, cuja característica vencedora é precisamente não transferir (e para o remover é o cabo dos trabalhos).

      um beijinho todo horrorosinho e um abraço da mesma estirpe, minha querida e inspiradora ana. Feliz Natal! :-)

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  8. Querida Susan inhabitants, votos de um Santo Natal para si e todos os seus membros repleto de saúde e paz.
    Um beijo do tamanho do Mundo da Dulce.

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    1. Minha querida Dulce, que bom vê-la por aqui! :-)

      Agradeço com um sorriso rasgado e retribuo: tudo de muito bom para si e para os seus neste Natal.

      Um outro beijinho, do tamanho desse seu tão bom.

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  9. as tintas devias deixar num ecocentro... boas festas com atraso! nã vi a panela, talvez nã fosse da qualidade do batom e tenha transferido!

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    1. Os nossos ecocentros não incluem tintas... acho eu.

      A panela, afinal, estava arrumadinha no sítio, eu é que não a tinha visto, sei lá porquê.
      Boas Festas para ti também, Manel (atraso nenhum). :-)

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  10. De batôn vermelho, deixo um beijo na bochecha direita e outro na esquerda.
    Continuação de Festas Felizes, Susaninha! :)

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    1. Ou seja, fico com as bochechas todas natalícias! :-)

      Minha querida Maria, que o teu 2017 seja tão doce e terno como tu. :-)

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