a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/10/2014

A aula

Na minha nova aula de dança há mães que levam os filhos pequenos. Recomendam-lhes silêncio e permanência no canto onde os depositam, por hora e meia, quietos. Enfiam-lhes um tablet na mão e mostram o indicador vertical em frente aos lábios.

Dez minutos depois o menino Serafim, que há-de andar pelos seis anos, precisa de passar de nível ou qualquer coisa do género lá no tablet e invade o campo onde nos esforçamos para alongar o pescoço; a mãe respectiva acode a correr, acocora-se, fazes assim, querido, olha, ensina-o como fazer e torna a suplicar pela dose de silêncio que se esgotou em menos de um fósforo. O miúdo regressa ao banco dos suplentes a caminhar devagar, rosto paralelo ao chão e ao tablet, vai cansado.

Agora vem ali a miúda a quem perguntei a idade ao chegar, tenho sete anos, em rota de aproximação apontada a outra mãe, com o respectivo aparelho electrónico que lhe causa espanto e leva bloqueios, traz a urgência da idade, para não falar em outras urgências que não me assistem, mãe como se põe naquilo de ontem, e a mãe acorre, solícita, afaga-lhe o cabelo, já está de cócoras, é assim, já te disse, clicas aqui, vês, agora vá, volta para o pé da tua irmã.

À terceira invasão do campo, a professora dá um grito de comando ao Serafim, que vem a rabujar e ainda falta uma hora de aula, o relógio de parede só marca vinte e trinta, ó mãeeeeee, a mãe acode a esta nova aflição, ignora o grito de comando autorizando o filho a ignorá-lo também, abraça o petiz, meu amor, é só mais um bocadinho, olha, joga este, vai lá.

Agora a professora falou alto para a mãe e disse que se está a irritar. Com olhinhos tristes e cabeça enfiada nos ombros, corre a mãe do Serafim de volta à sua posição, com passinhos pequenos, como se criança fosse.

Olho em volta para as outras, as não-mães, ninguém parece importar-se. Devem estar habituadas, aqui a recém-chegada sou eu.

Portanto fiz mal. Em vez de ter esperado tantos anos que as minhas filhas crescessem antes de regressar aos ginásios, podia tê-las levado comigo, haviam de me ter dado um jeitão a costurar uma meia, a pregar um botão ou, em dias mais apertados, a adiantar ali mesmo a preparação do jantar com as dicas que eu lhes podia ir gritando.

Hoje seria uma mulher muito mais em forma.

E talvez não me inquietasse com o futuro de uma sociedade desfocada pela ausência de fronteiras que delimitam os lugares de uns e de outros, que preservam os tempos para as refeições e o sono das crianças, que mantêm firme o direito à não interrupção de uma aula, seja ela de que natureza for.

Por isso não se admirem, mães, se os professores dos vossos filhos vos disserem que eles são insubordinados, que interrompem, que falam constantemente, que não sabem respeitar uma aula.

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