a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

14/10/2014

Bebe-se bem

Estou aqui estou, não a almoçar, que já não são horas disso, mas a vender o carro e acabou-se.

Aborrece ter muitos quilómetros a percorrer e depois um avião para apanhar e o raio do raio que caiu em cima do veículo, vindo do céu aos ziguezagues, que até lhe ouvi o zumbido, verdade que ouvi, destruiu a ponta da antena. Por conseguinte música agora nem vê-la, por acaso vê-la sempre foi difícil neste carro, mas pelo menos ouvi-la é que era, e depois foi a bateria que estava a dormir a sesta aconchegada debaixo do capot e o raio do raio, como digo, comeu-lhe a carga inteira, só deixou as cascas, e agora? Agora chove o céu todo de uma vez, o homem do reboque liga a dizer estou com medo de ir aí, não percebo nada desses carros, ai a minha vida, está com medo o quê, venha lá pela sua saúde e pela sombra que agora nem há outra hipótese, temos um avião para apanhar, está a ouvir não está, e ele então veio, apareceu na estrada a um palmo do meu nariz que a visibilidade deixada pelo nevoeiro não era mais nada, isto é capaz de estar um bocado confuso, mas é a verdade praticamente toda, ficando apenas a faltar a matrícula da viatura que eu punha aqui se me apetecesse.

Portanto estou aqui estou, não a comer, que é a beber um chá calmante que me encontro, mas a vender o carro. Chá marroquino, é novo.

Na sexta feira, por exemplo. Foi preciso comparecer em sítios bons para ir de metro e eu compareci. De metro, metro e mais um bocadão se me encontrar de pé.

Mas sentei-me, havia lugar. No colo dele, à minha frente, atenção à pontuação, é ler direitinho, repito, no colo dele, à minha frente, um bloco de desenho, ou melhor, em cima da perna um bloco de desenho, na mão um lápis, na ponta do dedo uma borracha incorporada na pele. Catorze anos tem este miúdo, não lhe dou mais. Tem um rosto negro, sereno, está concentrado, alheado de aqui e de agora, veste uma sweat-shirt que tem estampado o nome de uma universidade americana. Está um olho desenhado no papel. Sendo daqui um olho ao contrário, parece-me bem desenhado. Olho, agora eu, em redor, a tentar reconhecer o modelo. Vejo muita gente mas vejo ninguém, não está aqui. À minha frente, a cabeça ligeiramente inclinada, concentrado no desenho que progride avenida fora, debaixo do chão, nascido nas entranhas de Lisboa, vejo aparecer um nariz. Este nariz é de alguém? apeteceu-me perguntar. Não. Fico quieta a observar o quadro e vejo que é amor em desenho. Agora estão a aparecer os lábios e ele finge que apaga um risco a mais, com o dedo desliza-lhes por cima, mas eu sei o que é, a cabeça inclina-se para o outro lado, ligeiramente, observa melhor. A rapariga que para mim está ao contrário parece ter os olhos a brilhar e desejo intimamente que ela também desenhe assim os lábios de chocolate dele. O rosto transferido da memória para o papel está quase completo quando me levanto para sair. Levo para a rua um sorriso neste rosto que alguém um dia fez para ser meu, um sorriso que me foi posto aqui na alma, dentro do metro, como se acaba de ler. Portanto agora digo umas coisas.

O chá marroquino bebe-se bem é uma delas. A outra já sabemos.

(a parte mais difícil de escrever num blogue é arranjar títulos para os posts - fica mais esta, que ainda não tinha dito)

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