a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/10/2014

Substituídos por porcos

Diz-me a Cristina hoje à mesa do café e a talhe de foice que viu um casal na Estação do Oriente com um porco pela trela, todos queridos e tudo.

- Mas de que cor é o porco? - eu preciso de saber estas coisas, não vá o bacorito ser castanho e eu imaginá-lo cor de rosa.

- Era assim branquinho e tinha malhas pretas (eu não disse?) e fazia assim assim (aqui a Cristina inclina a cabeça e desliza com ela debaixo de uma mão imaginária que afaga que afaga) assim, para levar festas. Era muito giro, remata.

Uma.

A minha irmã viu, no mês passado, em São Francisco, naquela cidade do lado de lá dos Estados Unidos que tem eléctricos a imitar o 28 e os outros, uma ponte a imitar a nossa Ponte 25 de Abril, algumas colinas a aspirarem às sete beldades aqui da nossa capital e muita gente gira (mas não tão gira como nós, evidentemente). Ora ela viu por lá, numa determinada zona, um homem passear um porco - outro porco, claro - num carrinho de bebé. Este imaginei-o imediatamente cor de rosa e foi com muita convicção que o imaginei, tanta que me esqueci de lhe perguntar a cor do bicho. Talvez dentro do carrinho de bebé não se visse bem, tenho ideia de que ia de touquinha com folhos, mas adiante, que agora o que está feito está feito. Ao lado desse homem caminhava outro, não tão digno de nota, ora vejamos: levava pela trela um cão. Um cão normal, pronto. Sem carrinhos, sem toucas, nada, um cão.

Duas.

Às vezes tenho problemas em chegar a tempo e depois fico no apeadeiro à espera do próximo comboio que pode até nem vir, nem haver próximo (está visto que me deitei a chapinhar no sentido figurado, e isto é perigoso, não vá afogar-me p'raqui, mas é de estar nervosa).

É que mesmo atrasada queria contar que uma vez salvei a vida a um bacorinho. E tinha só dez anos, eu.

Estávamos empoleiradas, eu e a minha vasta colecção de irmãs, todas a espreitar para uma pocilga onde moravam uma porca de dimensões generosas, imaginemos o tamanho de uma porca de dimensões generosas, e uma legião de bacorinhos com dias de idade. A porca estava deitada de lado e os porquinhos todos a mamar ao mesmo tempo, uma coisa rica de se ver! Nós continuamos empoleiradas do lado de cá da cerca, muito admiradas a observar a suculência da situação, a comentar a diferença dos tamanhos, o tom rosa da pele dos animais, que fofinhos (é daqui que vem o cor de rosa).
Nisto a porca farta-se da criançada, sacode-os, eles não querem, guincham uns acordes de bebés em protesto, o que nos fez a todas emitir um

- Ohhhhhhhh

e volta-se para o outro lado. Ao fazê-lo espalmou devagar, com o seu imenso e suíno corpanzil, um dos leitões, que por acaso era dos mais franzinos, mas que mesmo assim guinchou tanto, pobrezinho, com voz fininha, logo abafada pela própria mãe em menos de dois segundos, uma mãe completamente surda, é o que é.

Gritámos todas. Uma de nós - quase de certeza fui eu - correu a chamar o homem que tinha ar de homem que sabia salvar porquinhos.

E era mesmo: pegou num ancinho enorme e correu comigo - quase de certeza fui eu - de volta ao local da ocorrência. As outras apontavam e gritavam todas ao mesmo tempo, ali ali, debaixo da mãe está um!

Ele espetou várias vezes com o ancinho no lombo da porca de generosas dimensões, e surda, que vagarosamente e sem vontade nenhuma se levantou e deixou então à vista, à nossa vista, a sua cria acidentada.

(a parte que se segue pode ferir as pessoas mais susceptíveis, caso em que se aconselha a parar a leitura aqui)

Deitado de lado no chão sujo da pocilga, estava um leitãozinho espalmado, inerte, de um tom roxo-azulado, a lembrar uma aurora interrompida, e apresentava estoicamente a espessura de uma folha de papel. O homem, que tinha já entrado na área, pegou no bichinho e sacudiu-o com jeitinho, abanou-o um pouco, falou-lhe com meiguice e nós todas, empoleiradas na cerca, do lado de fora

- Ohhhhhhhhh

Esperou que o bacorito recuperasse espessura, o que se verificou mesmo ali, para nosso deleite, e a seguir tentou pô-lo em pé. As pernitas judiadas tremeram um pouco, mas depois começou a cambalear e foi com muito estilo que cambaleou. E nós todas, ainda empoleiradas na cerca, do lado de fora

- Ahhhhhhhh

Portanto missão cumprida. O porquinho sobreviveu e o homem garantiu-nos que a heróica celeridade do chamamento - quase de certeza fui eu - é que o salvou da morte por asfixia.

Espero que esta tenha sido, apesar de parecer em atraso, uma história que responde ao desafio por antecipação, aquele que é capaz de nos chegar de outras paragens dentro de uns dois anos, no meio de dicas para ter blogues de sucesso, dicas nas quais os cachorrinhos eventualmente salvos de morte atroz serão, está visto, substituídos por porcos.

Valeu?

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