a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

22/10/2014

Esplendor de implantação

Fiz uma lista e depois dobrei a folha de papel. Meti-a no bolso.

Olho pela janela e noto uma fileira de luzes vermelhas ao longo da pista onde o avião acabou de aterrar. Não me lembro de as ter visto antes, serão certamente arranjos para decorar o natal, se é que o natal se pode decorar. Eu decoro muito bem as matrículas dos automóveis, tenho esta mania desde os cinco anos e ainda não me livrei dela, às vezes cansa imenso, detesto automóveis.

Dói-me a barriga. Devo ter engolido um montão de neutrinos quando fotografei o nascer do sol. Estava cansada outra vez e irrita-me estar cansada, fico com tendência para me queixar e fazer listas de coisas que não gosto. Volto a tirá-la do bolso, ainda dá tempo de a reler. As hospedeiras da TAP dizem Ladies and "Gémen" (ponho maiúscula, mas é capaz de ser sem), só uma vez é que ouvi uma pronunciar bem a difícil palavra gentlemen. Sorri-lhe com uma inclinação de cabeça muito respeitosa antes de sair, boa noite.

Também seria tão bom se os jornalistas da rádio dissessem legislação, "leslação" enerva.

Mas não são só eles. Uma vez perguntei a uma pessoa que gosta de contar as suas aventuras a conduzir no auto-estrada (sim, no auto-estrada) se também de vez em quando gosta de conduzir no estrada; a pessoa olhou para mim como se eu fosse um borrego morto ou tivesse dito frigorífico em grego e não respondeu, desconfio que me odeia um bocado.

Não nos deixemos ir no engano de pensar que eu não meto argoladas, meto muitas, até costuma ser uma especialidade que não fica nada atrás do caril indiano, mas ao menos digo constitucional muito bem.

Por exemplo, não combino a mala com os sapatos a menos que esteja distraída, e também não compro mobílias a condizer umas com as outras a não ser que goste mesmo muito de as ver juntas. Combinar tudo é monótono.

E para terminar, que estou mesmo a precisar de sair daqui e respirar ar puro, fica esta a fazer fé no que afirmo acima, para compor o post que está nuzinho nuzinho (não, não me envergonho, só me dói a barriga):

Tinha nove anos de idade e como toda a gente de nove anos de idade à época, fui levada pela minha mãe ao arquivo de identificação tratar do bilhete, agora já és crescida, vês, treinaste a assinatura? Eu um bocado nervosa com medo de rasgar o papel como já me acontecera no caderno da escola, assinei devagarinho e de repente reparei numa coisa muito interessante, que me fascinou. O papel amarelado que eu estava a assinar chamava-se Bilhete de Identidade. Li duas vezes para confirmar: era mesmo Bilhete de Identidade.

E não Bilhete "Dentidade" como eu sempre ouvira pronunciar (mãe, nem tu dizes isto bem, confessa) e que eu vagamente achava estar ligado à questão da segunda dentição que, aos nove anos de idade, estava em pleno esplendor de implantação em toda a gente.

Aborrecido, não é?


(a fotografia do nascer do sol confirma tudo e está grande para se ver muito bem)

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