a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

05/11/2014

Duras e lindas

Quando saí do trabalho já não estava ninguém no edifício. Os corredores que atravessam a área administrativa estariam já mergulhados na escuridão, não fosse o rectângulo luminoso do ecrã da fotocopiadora, que nunca dorme. Não sei bem onde se acendem as luzes depois de toda a gente sair, mas não é preciso. Continuei sem abrandar, liguei o alarme e saí nos sessenta segundos de tolerância antes de começar a sirene aos uivos. Tranquei a porta com a chave, dei duas voltas e entrei na noite.

Na rua o trânsito engrossou e o termómetro do meu carro marca treze graus. O outono conseguiu furar o verão e fazer-se sentir. Finalmente.

Mergulhados na escuridão, disse eu sobre os corredores. Se fosse nevoeiro, estariam envoltos, tenho a certeza. E se fossem mudar de emprego, haviam de ir abraçar um novo desafio. Há palavras que quando casam nunca mais se largam. Devem ficar felizes para sempre, não te parece?

Mas eu ia dentro do carro e agora não quero voltar atrás, os treze graus vão fora, ai não, não entram, escuridão por aqui também não há porque os néons e os automóveis cortam-na em pedaços demasiado pequenos para mergulhos. Ao longe vejo um relâmpago iluminar o céu, fica dia durante um milisegundo, p'raí, o que não tem graça nenhuma. Desde que um relâmpago por pouco não me caiu em cima há umas semanas, fiquei com medo. O carro é que apanhou com ele tão certeiro que lhe fez saltar a ponta da antena, descarregar a bateria, coisas assim engraçadas num carro, eu já te contei isto. Mas entretanto recuperou – a bateria, a ponta da antena ainda não – e tem andado bem, dentro dos limites da velocidade.

Entretanto com a conversa, quase me distraías, já cheguei a casa e vejo-me em preparos para a aula de dança. Torno a sair para a rua e cruzo-me outra vez com o rapaz que passeia os cães. Deve ser a pessoa que mais encontro casualmente, hoje trazia dois grandes e dois pequenos e vinha a sorrir. Parou para me dar os dois beijinhos da praxe e os cães às voltinhas, a arfar, a esticar as cordas em direcções estranhas, cada um na sua, Renato, és tu que os passeias ou levam-te eles a ti? está a ficar frio, adeus, prazer em ver-te!

A professora de dança diz que estamos todas moles, como é possível isso? manda-nos apertar imensos músculos como se tivéssemos onze anos, e depois vamos ficar duras e lindas, ela é que sabe. Obedeço e esqueço-me que já aqui vou, os onze anos multiplicaram-se por quatro já lá vão dois, não preciso de pausa para fazermos as contas, e a vida, que segue depressa, vendo bem, é cada vez melhor.

Mas sempre quero ver no fim da operação duras-e-lindas. Se até lá os relâmpagos me passarem todos ao lado, claro. Estás a perceber, não estás?

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