a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/11/2014

De chumbo

Gosto muito mais de café que de chá.

Só bebo chá por interesse. Quando tenho frio. Ou então quando não tenho nada para fazer, o que na verdade não sucede há décadas, acho mesmo que nunca sucedeu, mas era para compor o parágrafo.

Não é que hoje tenha tido frio, que o outono anda a brincar ao verão, mas pus-me a beber um chá de jasmim e morangos, verde e branco não sei se às riscas. O que me causa espanto no mundo do chá é a infinidade de combinações que se podem fazer, e que resultam numa infinidade de sabores, embora sempre todos bastante insipidozinhos, mas vejo muitas vezes, perante uma recheada e colorida prateleira de supermercado, o meu braço direito esticar-se em direcção a uma nova caixa de chá com novos frutos de imaginações férteis, tomara eu.

(a fotografia ajuda ao crédito da afirmação, veio o chá da Holanda, e eu não me importava nada de ter jeito para a fotografia de objectos que até costumam ficar quietos)


E ponho-me nesta conversa que não estava para ser o mote, mas motivos escondidos me levam a escrever um post quando bebo chá, porquê não sei.

O mote era Schubert, oiço milhares de vezes a Ave Maria que ele escreveu e tenho sempre pena que ele tenha morrido tão novo, se tivesse chegado aos trinta e dois, havia de ter ensinado os pássaros a cantar-lhe as músicas, acho eu.

Quando eu tinha filhas pequenas, tinha também um carro pequeno que um dia se lembrou de não deixar sair o CD que estava metido dentro do leitor. Calhou esse ser um CD de Schubert e eu não censurei o carro mesmo nada, até gostava muito dele.

Quando eu tinha filhas pequenas, tinha o tempo também pequeno para levar o carro à oficina só para o fazer devolver-me o CD que ele tinha engolido. O facto de ser possível ouvir o CD vezes sem conta não me motivou por aí além para ir à oficina no meu pequeno tempo. No entanto, à medida que as semanas passavam, os protestos que vinham do banco de trás aumentavam consideravelmente.

- Minhas queridas, esta música, oiçam bem, é linda, é a Ave Maria de Schubert. A tia entrou na igreja ao som desta música - tentei.

Quando eu tinha filhas pequenas - dizem que a repetição das coisas dá muita tranquilidade e eu estou a fazer fé nisto - fui à oficina tentar que um mecânico com muita arte convencesse o carro a devolver-nos o CD de Schubert, visto já o ter deglutido há nada menos que quatro meses, lembro-me bem porque fiz as contas.

Aproximei-me do balcão. De cada lado levo uma filha, a mais nova tem cinco anos.

- Boa tarde, trago aqui a parte frontal do rádio do meu carro, vê o senhor? Este rádio tem lá dentro um CD já há um tempo (omiti a parte dos quatro meses para não manchar a minha imagem) e o CD, embora toque normalmente, não sai nem que a vaca tussa (não tenho a certeza se falei na vaca, mas lembrei-me agora de o fazer e que bem ficou).

Antes que o homem de fato-macaco azul atrás do balcão pudesse responder, oiço do meu lado esquerdo a voz de cinco anos dizer muito depressa, a miúda em bicos de pés para estabelecer contacto visual com o homem:

- Ó senhor, por favor! Arranje o rádio que eu já estou farta da Ave Maria de chumbo!

(o rádio não ficou arranjado dessa vez, foi preciso outra oficina e muita paciência, mas não da minha parte, que eu nunca me farto)

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