a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

10/07/2015

Antes de as ervilhas se apaixonarem

A bem de toda a família, preciso de arranjar uma actividade adequada para enfiar nos minutos excessivamente longos que me prendem ao fogão entre o ligar o vermelhão da chapa no máximo e os alimentos começarem a queixar-se do calor e por conseguinte requererem afagos concretos à colher de pau. Até lá experimento o tédio e a impaciência que não me lembro de ter colhido quando à minha frente se instalava um fogão a sério, fogo azul, um plasma vivo no qual os meus olhos dançavam, coisa tão despachada nas feituras (e dava para fazer incandescentes chapas de ferro em forma de coração para esturricar superfícies de leite creme e agora nada, não há leite creme). Estender a roupa já experimentei, até gosto bastante: enquanto aperto as molas espreito a vida do bairro, em baixo, oiço o papagaio do quiosque onde se compram flores caríssimas e os carros passar na rua, por vezes o sino da igreja também aparece e o rio sempre a mostrar um pedacinho do dorso, ao fundo. Porém, não meto todo este pacote na janela de tempo disponível e sou recebida de volta à cozinha por uma cebola de repente castanha na tonalidade muito escura, colada ao fundo da frigideira e afins destes. Afins destes é possivelmente uma redundância que vai ficar. Já ponderei orientar-me mais a sul e deitar-me precisamente ao rio a tentar pescar um quê de poesia na corrente, velejando sem me mexer, sou capaz, mas sei que regressar a mim antes de as ervilhas se apaixonarem pelo tacho e se fundirem com ele e depois nem umas nem outro, e o pior é que os ovos já lá estavam, será um desafio. Gostaria de saber como faz quem sabe cozinhar verdadeiramente e sem novidades para contar (não terá blogue, está certo, mas quem precisa de blogue quando é um sucesso no garfo?). Falta referir que ler ou escrever nem pensar, as palavras mostram tendência para me engolir à hora de fazer o jantar ou qualquer outra coisa.

Creio, então, que o ideal será retomar o cachecol de tricot que comecei em dois mil e onze com agulhas sete e que nunca visitou as beiras do fogão molengão. Grande ideia para as malhas, talvez até dê para uma carreira inteirinha ou duas. Depois conto.


(este blogue é capaz de se virar para dicas caseiras - por exemplo, como remover frascos de shampoo vazios da casa de banho das miúdas sem fazer três viagens de ida e volta ao contentor das embalagens para reciclar - eu cá não perdia o próximo número)

9 comentários:

  1. Bem, Homónima, se quiseres, eu não me importo que termines a prenda de casamento que queremos oferecer a um casal amigo que se casou há 15 anos ...e eu ainda não terminei o quadro a ponto cruz que um dia ficará maravilhosamente bem na parede da cozinha deles. Aceitas? :)

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    1. Querida Pseudo, nem sabes o ás que sou no ponto cruz. Venha daí o quadro!

      Mas... e o casal ainda é teu amigo?... Simpáticos...

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    2. Eu também era um ás nisso. Depois tive um filho e perdi essa qualidade. E acuidade visual. E paciência, pronto...

      E sim, ainda são. Baptizados, festas de anos, Páscoa e outros convívios são lá passados. :)

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    3. Homónima, para a acuidade visual há uns óculos muito giros que nos fazem irresistíveis em termos de charme amadurecido, eu cá bem tenho visto isso. :-)
      E isso, sim senhor, são amigos! Um abraço a eles.
      (Fiquei curiosa quanto ao conteúdo do quadro, ocorre-me um serviço de chá vintage... será? )

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    4. Fica prometido: quando encontrar a revista no meio da tralha cá de casa, escrevo um post ilustrado. :)

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  2. És uma cozinheira de mão-cheia.
    Fica uma dica para o leite-creme: substitui o açúcar por canela. Só gosto dele com canela.
    Gostei do texto. Andas a escrever cada vez melhor.
    Beijos e bom fim-de-semana.

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    1. Às vezes sai-me a mão cheia, outras enfim, tenho problemas de impaciência. :-) Obrigada pela dica, Isabel, vou mesmo experimentar, leite creme é tão bom.
      Mão-cheia de generosidade és tu. Obrigada, Isabel.
      Beijos de volta, bom fim de semana.

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  3. A dança dos tachos não é, de todo, algo que me anime. As idas ao contentor de embalagens também não. Bom, a não ser em fins de tarde de Verão, quando tropeço nas amigas e se juntam gargalhadas ao som das embalagens a bater lá no fundo.

    Beijos, Susaninha. :)

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    1. Querida Maria, eu dançar gosto muito, mas os tachos é que têm os pés pesados, de facto. :-)

      Beijinhos de volta, bom fim de semana.

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