a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/07/2015

Espécie de ratatouille sem manga

Esforcei-me, queria escrever um texto delicioso e escolhi ratatouille. Uma espécie, quer dizer (eu faço o que me apetece). 

Depois de reservar ao lado esquerdo de quem está de frente para o armário dos pratos, os vegetais vermelho sangue (um lindo naco de pimento) e os verdes a evoluir do branco (alho francês e courgette, corações de duas cores), faltou-me um tom laranja (escolho as tonalidades com o bocado de arte que me cabe). Olhei para a manga que vive há uma semana ou mais, o tempo passa a correr, no frio azul do meu frigorífico e vi que está cansada, engelhada, pouco firme dentro do seu invólucro que cobre um dégradé muito lindo (porém suculenta). Peguei nela e coloquei-a gentilmente em cima da bancada para se aclimatar ao verão que me arrombou a janela da cozinha, descansar, esticar a pele, e lanço-me aos outros de faca na mão. 

A leste de tudo isto, ouve-se o plim oco do telefone, insinuando-se desolado, avisando que devo apagar mensagens caso pretenda receber mais. Enquanto o vermelho e o verde se entendem, laminados, na cama de azeite a arder onde os deitei, e depois enfeitei de sal, avanço a pegar no aparelho, olha que boa ideia para me entreter neste entretanto. 

Começo então a apagar as pequenas missivas, vamos amanhã à praia, vamos, já pode encomendar os livros escolares com quinze por cento de desconto, estas são fáceis, hoje vais à ginástica, vou, deve liquidar a factura da água até dia tal a menos que já o tenha feito e então descarte, descartei. Na boa. No entanto, chegando àquelas do tipo mãe tive dezassete vírgula seis a matemática com três pontos de exclamação, mãe vens almoçar comigo sem ponto de interrogação, ao chegar a estas, suspiro. Suspirando, apercebo-me de que os vegetais já chegaram a uma plataforma de entendimento, está a cheirar tão bem, a prometerem saber-me pela vida (acho que também é a Carla que diz isto, saber pela vida) e acelero. Ao todo, num minuto e meio, devo ter dizimado algumas dezenas de mensagens. 

Parei naquela em que se lê “mumy es linda linda”, situação que sendo verdadeira pode mudar a qualquer momento da vida de uma pessoa, sei lá eu. Esta fica, pode fazer falta. Pousei o telefone ao lado da manga ainda de casaco vestido. 

Com a colher, dou algumas voltas ao ratatouille, quer dizer, uma espécie de. A manga fica para amanhã, será reduzida a puré e deixada escorregar assim para cima de um paralelepípedo de gelado de nata desenformado da caixa e agora lanço lá para dentro, colocando a voz na curva do corredor,

- Amor, mumy leva dois émes no lugar do segundo!


16 comentários:

  1. Estava a lê-la e a pensar como seria um livro de receitas escrito pela Susana. Conclui logo que seria uma maravilha. Sabores, saberes e afetos à solta, sabiamente misturados nas doses certas pela mão hábil da querida Susaninha. Foi uma delícia ler este texto!

    Um beijinho e um dia feliz :)

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    1. Querida Miss Smile, eu acho os livros de receitas aborrecidos, de facto. Mas gosto da parte do "reserve". Acho tranquilizante. Do tipo, "pode aguardar na sala de espera" quando vamos ao dentista. Adoro salas de espera, posso ler à vontade sem sensação de culpa. :-)
      As suas palavras é que foram deliciosas de ler. Muito obrigada.
      Outro beijinho e uma boa noite.

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  2. Olá, Susana.

    No Sábado comentei o teu texto 'doce' mas o comentário perdeu-se nestas andanças entre cá e lá! Acho que já não o consigo reproduzir mas tenho de te dar os parabéns pelas 'doces' palavras que ouviste! Caramba: é tão bom quando os filhos gostam da sua vida! E então quanto gostam "tanto"... ! ;-) É tão bom encontrarmos o 'açucar' da vida nas coisas pequenas! Hoje voltaste a encontrá-lo, algures entre os aromas do ratatouille e as memórias :-).

    Beijinhos, Susana, é sempre bom ler-te, quer comente quer não comente!

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    1. Minha querida Carla, muito obrigada pelas tuas palavras. Ouvi-los manifestar satisfação por situações fundamentais, como simplesmente a vida que têm, é de fazer-nos transbordar, pois é.
      Eu sei. Não precisas de comentar para eu saber. :-)
      Beijinho.

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  3. Susana, chegou-me aqui o perfume de mais esta iguaria. Desde a escolha dos vegetais até ao produto final, simplesmente maravilhoso. Três estrelas Michelin.
    Por isso venho cá almoçar todos os dias.
    Ah, já me ia esquecendo, eu acho que este ratatouille também levou mommy...

    Beijinho

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    1. Mas esse perfume que chegou aí devia ser das tuas flores :-) Aqui não se vêem passarinhos nascer, nem consigo fotografar mais que as orquídeas periclitantes ou o manjerico que se deve ter esquecido de morrer e agora está-me a dar florzinhas brancas, onde é que já se viu?
      Muito obrigada, Teresa! :-)

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  4. Susana, eu não sei o que é ratatouille... Talvez pela Wikipédia chegue lá. Se for coisa refogada, frita ou com molho, esquece. Come tudo.
    O que julgo saber é que não é bom guardar as mangas (não as do casaco, bem entendido), no frigorífico. Assim como as bananas, por exemplo.
    E o teu telefone dá-te esses avisos todos? Rifava-o já e comprava um que só deixasse entrar o estritamente necessário, como esses elogios das tuas filhas.
    De casaco vestido... Mas mudaste-te para a Noruega?
    Estou tão confusa;)
    Beijo e boa semana.

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    1. Ratatouille, para além do som fabuloso se a gente pronunciar bem a palavra no francês que lhe é devido :-), é uma mistura de legumes salteados baseada em vermelhos, verdes e amarelos. Leva tomate, mas eu gosto mais sem. E invento muito.
      O casaco vestido (eu sabia, argh) ficou mal explicado... era o da manga - chalaça - o casaco tem mangas, a manga tem casaco - não o meu... :-)
      Beijo e boa semana para ti.

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  5. Já comia... que cheirinho bom tem o seu texto, Sisaninha ! :) :) Hummmmmm

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    1. Estava bom, pois estava, querida M D !!!! Para onde posso enviar uma caixinha à sua atenção?

      Beijinho.

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  6. Sempre que leio ratatouille Lembro-me do filme de animação com o mesmo nome e que me deliciou, no meio de um monte de crianças, numa sala de cinema, há uns anos atrás. O teu não lhe ficou atrás, nestas tuas palavras sempre tão bem escolhidas.

    Um beijo, por este é pelo outro post. Nunca te julgues por coisas que, vistas com rigor, são muito pequenas quando comparadas com a imensidão do amor de mãe.

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    1. Eu também me lembro do filme :-)

      Muito obrigada, querida Maria. Um abraço apertado.

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  7. Mais do que fragrâncias, sabores ou cores, os teus textos possuem uma textura surreal.

    Magnífico Susana, Magnífica Susana!

    Um beijo e um sorriso.
    Obrigado.

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  8. Olá Eros, bem-vindo!

    Magnífico foi esse comentário, muito obrigada!

    Outro beijo e outro sorriso.

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