Levei muito tempo a aceitar que o açúcar fornecido pela fruta é precisamente o mesmo que se mete industrialmente, à pazada metálica-asséptica ou com dispensadores talvez basculantes, dentro de um maravilhoso magnum de amêndoas. Maravilhoso porém carregado de incertezas quanto à bondade de o consumir, mas isto só até hoje, dia em que me caiu a ficha.
- Ai mãe, gosto tanto da minha vida.
No último dia de um outubro antigo, trazia dentro do corpo a minha segunda filha a preparar-se para o milagre da vida. Apesar do peso que já tinha acumulado, comprei exactamente um magnum de amêndoas, com uma desculpa formulada para dentro, é só desta vez. Libertei-o lentamente da embalagem - para não ferir as lascas amendoeiras incrustadas na pele de chocolate - e foi à frente dos meus olhos a brilhar que isto se fez. Estávamos junto a uma praia das imediações de Sintra. O sol da tarde inclinava-se gentilmente estendendo um braço de luz com a generosidade de um espectro inteiro no campo do visível. Foi-me então possível caminhar com os tornozelos dentro da água fria de gelado na mão. Na outra levo a ponta do vestido próprio para grávidas, não fosse às ondas apetecer molhar vestidos próprios para grávidas.
Lembro-me que nesse momento me invadiu uma felicidade descomunal. Tão grande que me foi difícil guardá-la dentro do meu coração único, quase pedi outro emprestado para ajudar. A praia está deserta para além dos fosseis de dinossauro que não se vêem daqui e as minhas três pessoas e meia (o meu outro rebento levava dois anos de milagre da vida) que me olhavam, dizendo, as três pessoas, sai-daí-vírgula-já-não-é-verão, mas para mim era. Foi. E continua a ser.
A minha filha segunda, essa que, esta semana, outra vez:
- Ai mãe, gosto tanto da minha vida.
E só hoje me caiu a ficha, como diz a Carla. Foi aquele magnum de amêndoas. Impregnado do açúcar que se apanha na fruta, salpicado de sal na última luz espectral de um outubro antigo, aprontou-me a miúda para ai-mãe-gosto-tanto-da-minha-vida. E é frequente. É verão.
É o milagre da vida.
Tem a doçura toda nela, a do magnum e a do teu amor.
ResponderEliminarBoa noite, Susaninha, e um beijo. :)
Tem mesmo, tem isso tudo. E muito mais, claro :-)
EliminarBeijinho, Maria.
Olá, Susana.
ResponderEliminarNão tenho dúvidas de que um magnum - de amêndoas, ainda por cima! - faz milagres desses de fazer os rebentos nascerem a gostar "tanto da vida deles" =)
E não é que eu adorei a ideia? Vou experimentar comer um, assim, com os tornozelos mergulhadinhos no mar, não a usar um "vestido próprio para grávidas", que essa moda em mim, a esta altura da vida, não haveria de ficar muito "própria", mas, já que o verão está quentinho, deve ser a pedir um biquini e gelado na mão =)
Belíssimo texto.
bj amg também à menina que ama a vida
Muito obrigada, Carmem. Belíssimo é receber comentários assim. :-)
EliminarBons mergulhos e um beijo amigo de volta.
é o melhor que os filhos nos podem dizer :)
ResponderEliminarAna, é um prazer tê-la aqui' bem-vinda! :-)
EliminarÉ, de facto, o que de melhor se pode ouvir de um filho.
(Também sou de setembro) :-)
obrigada, eu venho aqui todos os dias :)
EliminarTemos de reconhecer que a vida é mais bela no seu modo agridoce :)
ResponderEliminarQue prazer saborear um gelado com os pés mergulhados em água salgada!
Um beijinho e um bom fim de semana, Susaninha
São as coisas simples da vida que a fazem mais agri e mais doce. :-)
EliminarOutro beijinho, querida Miss Smile, bom domingo.
Como sabes, gelados, alimentos doces, são coisas que pouco ou nada me dizem. Embora ande há meses com desejo de farófias... Mas não tem nada a ver com vestidos de grávida, que é indumentária que não assentaria bem a uma avó.
ResponderEliminarMas gosto de doçuras feitas de palavras, como acho serem essas que a tua filha diz. Ao mesmo tempo, engraçadas e ternurentas.
Ah, e não faria mal nenhum que o mar beijasse um vestido próprio para grávidas. O mar conjuga-se bem com qualquer roupa e estado. Até o estado de graça.
Abraço, Susana.
Mas Isabel, farófias é o doce mais esburacado que há, aquilo na verdade é ar muito bem arrumadinho dentro de uma espuma armada, de facto pouco doce. Mas bom, mas bom :-)
EliminarObrigada, um abraço de volta.
Delicioso, não o gelado, ou também o gelado, mas o texto. Um texto doce com amêndoas.
ResponderEliminarCaramba, Susana, que escreve bem que se farta. Entretanto passa uma boa energia para este lado Não sei se sabe mas tenho esta paranóia com as energias. Pancadas, pena que não sejam doces como algumas das palavras que escreve. Algumas? Arrisco um pouco mais, todas.
Beijinho e bom-fim-semana. Para a menina do ' Ai mãe, gosto tanto da minha vida' um maior ainda. Tomara que goste sempre. É o que desejo :)
Maria, ando desde ontem a pensar naquele seu post com a pergunta "o que é a felicidade". Queria responder, até cheguei a escrever o comentário, mas ficou tão mau, que não o publiquei. E agora, de repente, veio-me a resposta: felicidade é receber comentários assim dos meus queridos leitores.
EliminarMuito obrigada, querida Maria. Do coração.
"Tudo era claro:
ResponderEliminarcéu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves - só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado."
Eugénio de Andrade/ Mar de Setembro
Tens uma filha linda Susana(duas).
Um beijinho(o que fazem desejos de gelado de amêndoas...consumados.)
Bom fim-de-semana.
Caramba, isto é um presente. Que lindo mar de Setembro!
EliminarOs desejos deviam ser sempre consumados. :-) Todos.
Outro beijinho, Teresa, obrigada.
Passando pela net encontrei o seu blog, estive a folhear achei-o muito bom, feito com muito bom gosto.
ResponderEliminarTenho um blog que gostava que conhecesse. O Peregrino E Servo.
PS. Se desejar fazer parte dos meus amigos virtuais faça-o de forma a que eu possa encontrar o seu blog para o seguir também.
Que haja paz e saúde no seu lar.
Com votos de saúde e de grandes vitórias.
Sou António Batalha.
Obrigada, António. Haja paz e saúde no seu lar também.
ResponderEliminarÉ o Verão, Susana, e os irresistíveis magnums com ou sem amêndoa. Doces como o teu texto!
ResponderEliminarObrigada, Maria. Os magnuns são todos bons, é doçura que carrego Verão após Verão.
EliminarUm beijo (gostei de te ver atrás da moita... :-))