a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/05/2016

Sim, sucumbi (por ser dia da mãe)

Pela janela da cozinha vejo o arranjo de mesa corrida coberta de vasos em vez de ouvir o papagaio, cenário montado junto ao quiosque das flores que hoje está maior, mais bojudo, largo ou comprido e, se olharmos bem, vemos pessoas a transportar flores em vaso ou em ramo e em todas as direções a partir daquele centro nevrálgico às cores.

(no supermercado estive muito mal disposta do tipo rabugenta e nesse estado perguntei na caixa com modos enviesados como é que posso ver-me livre das mensagens dali provenientes que recebo no telefone sem querer)

A três metros da janela por onde olhei as flores, ponho-me dentro a desfiar a posta de bacalhau frio acabada de sair do frigorífico, por isso é que está frio o bacalhau e fria a posta, e um bocado dura, se for a posta o sujeito, e a colar-se-me aos dedos, é de ontem, e agora estou a achar que devia haver uma palavra assim: dontem, até soa a português antigo, que lindo, mas não há palavra assim e continuo com o bacalhau, olha estou a receber uma mensagem - do bacalhau? - sim do bacalhau, esta quero saber qual é, diz lá bacalhau, digo, estou a estranhar-te, susana, cortaste o cabelo, cortei, e vou ser só teu? vais, bacalhau, só meu, não quero ser só teu, mas qual é a tua ó bacalhau, se eu te gosto tanto mesmo frio, mesmo duro, mesmo a colar aos dedos, ou fria, e dura, mas isso era a posta e já não é, agora é lascas.

(respondeu-me a senhora da caixa que eu podia perguntar a outra senhora de outra caixa sobre como libertar-me de receber mensagens do supermercado, é que eu não sei, minha senhora, mas porquê? não gosta de receber as nossas mensagens?!)

Almocei sozinha a contragosto do bacalhau e já depois da cozinha arrumada não tomei um café e tomei a janela, eu o que gosto da janela, a mesa corrida das flores tem uma parte já sem, está branca essa parte, são muitas as pessoas com mãe a receber flores.

(não, não gosto, a senhora da caixa estende-me o talão no final da operação de pagamento e depois diz querida não sei quê tente lá na outra caixa a minha colega sabe isso das mensagens, chamou-me querida mas continuei rabugenta e não fui à colega das mensagens)

A meio da tarde devolvo-me ao assomo da janela, hoje passo o dia na cozinha se não contarmos a ida ao supermercado, os compradores de flores já limparam mais de meia mesa corrida, muito mais, está lá quase nada, isto é que foi uma dinâmica valente e agora imagino mães, muitas mães de braços estendidos a receber flores com beijos e com abraços, flores só com beijos, flores só com abraços, mas cheiram-nas, todas as mães vão cheirar e dirão que bem que cheiram as flores meu amor, os filhos são sempre os nossos amores e eu vou e telefono às minhas, uma não atende, a outra também não.

A causa da rabugice foi encontrada: era de não escrever; e as minhas filhas, quando chegaram do fim de semana com o pai, disseram, as duas:

- Mãe, estás tão linda.

As duas.