a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

16/03/2017

O ovo e a galinha (ou histerese de um amor, sei lá eu)

Há um livro que eu simplesmente amo. O livro tem luz dentro e por um tempo viveu na mesa da cozinha para combinar a sua luz com a da manhã; na minha pequena ideia seria esse o melhor presente para o livro (e também porque eu queria que as minhas filhas pegassem nele e lhe vissem a luz, mas elas não pegaram e se for eu a ler para elas não funciona - já tentei). Penso que o livro gostou da cozinha. E não se importou, mais tarde, que o levasse para o quarto. Levei-o para o quarto porque eu queria dormir com o livro. E acordar com o livro também queria. E quero. Mas tem acontecido que acordo dentro dele. Não me assusto com isso, posso sair deixando-me fluir de novo para fora do livro, entrando no dia assim, fluida daquela sua luz, e isto não é mentira, é verdade. Tanto é, que hoje tomei a hora do meu almoço e trouxe-a para dentro do livro comigo. Abri-o devagarinho e entrámos nele, a hora do almoço e eu, para darmos um passeio lá. Quase fiz um piquenique no livro. Mas não é isso que quero dizer, quero dizer que há tempos ouvi uma entrevista (por sorte minha) concedida pela autora deste livro que eu amo (entrevista muito antiga). O entrevistador perguntou-lhe qual o conto dela de que mais gostou. Após um momento pensativa, ela disse muito séria “O ovo e a galinha”. Porquê “O ovo e a galinha”?, ele quis saber. Porque eu não entendi nada desse conto, ela respondeu. Ora isto sou eu. Sou eu porque me faz dar um salto escrever-se um conto do qual não se entende nada. É soberbo. Claro que fui buscar o livro de contos seus – que não é o livro que amo, é outro – e li o conto “O ovo e a galinha”: também não entendi nada, fiquei feliz. Estou, então, a passear no meu livro amado junto com a minha hora de almoço e encontramos alguma coisa sobre o ovo e a galinha, que não me parece o tal conto, parece diferente, leio: “O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho atingível pela galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe realmente ovo. Se soubesse que tem em si mesma um ovo, ela se salvaria? Se soubesse que tem em si mesma um ovo, perderia o estado de galinha.” … “A galinha tem um ar constrangido.” O meu coração bate mais depressa, é do amor ao livro. Extinguiu-se a hora do almoço muito antes de conseguir fechá-lo, tornar a fluir de dentro dele para fora. Saí, mas saí precisada de vir direta escrever isto que ficou a fervilhar na minha cabeça. Não há nada em mim de Elis Regina, que eu tenha notado, não há Patti Smith, não há em mim nada de Sylvia Plath, também não há em mim Assunção Cristas ou Catarina Martins, nada, talvez um pouco de Gabriela Canavilhas haja em mim, talvez também um nada de Amy Winehouse, talvez um nadinha. Mas há em mim carradas de Clarice Lispector. Carradas. Nunca vou acabar de ler este livro que amo, nunca. Pela minha saúde.


(A Descoberta do Mundo, Crónicas, Clarice Lispector, Relógio d’Água)

21 comentários:

  1. Susana, depois de entrar, é impossível sair dos livros de Clarice Lispector. É que não se consegue mesmo. O livro de contos tem lugar cativo na minha mesa-de-cabeceira. Tal como tu, faço-o durar, durar. Cada conto tem de ser saboreado, relido, remoído. Porque Clarice escreve com a dor encostada ao peito. Que bom que eu e tu temos carradas de Clarice Lispector dentro de nós. Estamos em excelente companhia :)

    Um beijinho

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    1. Fico sempre melhor quando saio de uma leitura da Clarice, de qualquer maneira, melhor. É de facto estranho, algo poderoso. Ela escreve com a dor junto ao peito mas parece que a dor não a enfraquece, está sempre a fazer as pazes com o que a perturba, há muita luz no que ela escreve, é a palavra que me surge, luz. Adoro, adoro.
      E que bom saber-te também nesta companhia, Miss Smile. :-)

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  2. Gostei muito deste lado Lispectariano da Susana. Muito.

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  3. Depois do que li, vou reler e ver se te encontro lá dentro :)

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  4. ah, ah, ah...pois digo-lhe que em mim também há sem haver Dona Clarice. E abunda mais ou menos, que às carradas tenho dúvidas. Mas eu não sou como ela embora gostasse só um bocadinho porque prefiro ser como eu (podia era ter um jeito danado para escrever como ela que, mesmo que não soubesse o que queria dizer com o que tinha escrito, era um primor primordial e dava jeito. Já emprestei e recomendei A Descoberta do Mundo a toda a gente que conheço bem e à que conheço assim assim e só não o fiz com desconhecidos por viver num mundo com pouca gente leitora e portanto...portanto. Só à minha conta a editora já ganhou uns cobres:). Mas quem a lê ganha.

    Hummm...e também fui ler a história do ovo e da galinha depois da entrevista:). Achei-a estranha, mas estranhamente bonita e bem escrita. E original, assim uma coisa de virgindade que não se explica. Aquela mulher tem um amor tão soberano às palavras que me dobra involuntária.

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    1. Oh... que bom saber disso, bea. Isso de ter recomendado e oferecido tanto este livro.
      Será que vimos a mesma entrevista? se o conto do ovo e da galinha é estranho, a entrevista também é, e triste, muito triste. Ela deu a entrevista uns meses antes de morrer, e acho que se vê que ela se está a preparar para ir, ela até diz que "estou falando de meu túmulo".
      Mas é belíssima a forma como ela dá vida ao que escreve, sim, é isso que diz, lê-se ali "um amor soberano às palavras".

      E que pena vivermos num mundo com pouca gente leitora, que pena.

      (ah! e eu também gosto muito de ler os seus comentários, bea)

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    2. O livro é um bocado caro. Só ofereci um. Emprestei e recomendei.

      Sim. Foi a mesma entrevista (segundo parece não deu outras). Ouvi-a - e vi-a - pela primeira vez na exposição da Gulbenkian "A hora da Estrela" (julgo que era este nome). Fiquei ali no escuro a ser levada pela voz dela. Comoveu-me e encheu-me de orgulho por ser mulher, que pelo menos na condição estamos as duas. Não sei quem era antes a Clarice, aquela, que foi a que vi e ouvi, estava desesperançada, gasta pela vida e muito doente. Como seria antes daquele tempo...não sei. Mas no que diz respeito à escrita e à literatura, ela, tenho certeza, opinaria o mesmo ainda que a circunstância fosse outra. Porque a sua vida verdadeira era a escrita (afirmou que entre romances estava morta). Sem a escrita, ela existia morta. E isto não é tão bonito como verdadeiro: não escrever por tristeza, mas para estar vivo.

      BFS

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    3. Acho que a sensação que tive ao ouvir e ver a entrevista (descobri-a por acaso no Youtube), foi muito parecida com a sua descrição, bea. Também senti que aquela Clarice da entrevista não era a mesma que lemos. Mas sim, ela disse estar morta entre livros que escrevia. E de facto estava quase morta na entrevista, tal era o esforço que fazia para estar, para falar. Impressionou-me muito. Dá a impressão que ela queria mesmo morrer. Morreu tão nova (57 anos).

      Bom domingo, bea, e obrigada por estas tertúlias.

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  5. Olha, Susana, há textos teus que acho particularmente maravilhosos, este é um deles, estou aqui toda eu a sorrir, e foi neste estado que fiz a escolha que vou deixar aqui:

    "O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito." :-) (lá está, vês, lá continua o sorriso, vou sair daqui com ele, está visto)

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    1. Então a Clarice também se foi instalar em ti, Cláudia. :-)

      Este texto do ovo é extraordinário, está cheio de uma filosofia que sinceramente, a gente fica ali a saborear, a crescer, a rir da comicidade também, é completo. Continuo é sem perceber porque há tanta gente a não querer livros, como a bea ali referiu e é verdade.

      E eu gosto tanto dos teus comentários, Cláudia. Também me põem a sorrir. :-)

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    2. Conheço e sempre conheci muita gente que não quer livros, sabes que tenho esta ideia, e vou só referir-me ao que se passa em Portugal, a situação tem vindo a mudar, claro, mas estas coisas levam tempo, mas estava a dizer-te que tenho esta ideia de que os portugueses viam a ignorância como uma espécie de virtude, que confundiam com simplicidade, quem sabia qualquer coisa mais era visto como arrogante, um vaidoso, normalmente vinha depois aquela frase "ter a mania que sabe tudo", não sei se também já reparaste que a maioria das pessoas quase pede desculpa quando sabe mais do que os outros sobre um qualquer assunto, e se quer partilhar aquilo que sabe começa logo por dizer que não sabe mais do que ninguém e por aí fora, portanto, sente logo necessidade de começar por penitenciar-se, acho que tantos anos de extrema pobreza, muito pouca gente tinha oportunidade de estudar, fez com que as pessoas, para além da necessidade, também para sentirem que tinham valor, privilegiassem o trabalho acima de todas as coisas e principalmente o trabalho braçal, daí teres como qualidade fundamental "o ser muito trabalhador" e também teres uma frase mais ou menos assim: "empregado de escritório, pffff, sabe lá o que é trabalho", a pessoa podia até ser execrável, mas se fosse "muito trabalhadora", e melhor ainda, nesse caso então seria a completa glória, se não fizesse mais nada para além de trabalhar, tinha a admiração da maioria, ora, ler requer tempo livre, tempo para parar, tempo para o ócio, tudo coisas que eram extraordinariamente mal vistas, ou então "coisa de ricos" daí à pessoa ser apelidada de preguiçosa, "ou de estar armada em fina ou em intelectual", era um pulo, repara que tens hoje gente que deprime quando se reforma por não saber o que fazer à vida, por não ter ideia de que há tanto para fazer para além de trabalhar (tens aqueles que sabem, mas como não foram habituados ao prazer que isso é, agora não conseguem retirar prazer disso) que têm, lá está, nomeadamente, tanto livro para ler, mas aquela pessoa cresceu a ser valorizada por ser muito trabalhadora, por desprezar o ócio, então, posso estar enganada, mas penso que são estas raízes que, ainda hoje, embora muita coisa já tenha mudado, fazem com que continue a existir tanta gente que não quer livros, como sabes começamos por imitar o que vemos e é assim que vamos crescendo, até os prazeres se aprendem. Para além disto tudo, ler requer tempo para poder mergulhar num outro mundo, tranquilidade, silêncio, e também gostar de estar consigo mesmo, e sabes a conclusão a que cheguei por tudo o que tenho escutado das pessoas, é que há muita, mas mesmo muita gente que não gosta de estar consigo mesma e dizem uma coisa extraordinária: "que depois começam a pensar e..." a frase costuma ficar assim mesmo, incompleta.

      Bom domingo, Susana.

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    3. «...como sabes começamos por imitar o que vemos e é assim que vamos crescendo, até os prazeres se aprendem.»

      Discordo da Cláudia neste ponto e até o diagnóstico penso não ser o acertado. Eu cresci numa família de não-leitores, que atiram farpas de desprezo aos livros, que quando tocam num é um milagre de 10 páginas lidas de um Rodrigues dos Santos qualquer, e, eu, sou um leitor culto com biblioteca feita do zero e sempre em crescimento. O próprio Saramago nasceu entre gente sem biblioteca; inúmeros casos assim. A coisa é mais inata, como todas as grandes verdades e coisas, do que conjuntural e produto da formação. Ler é já um acto criativo; é preciso participar, não é sentar-se e engolir tv; não é para artolas, inábeis no pensamento, sensibilidades de esfregona, não-curiosos... o que existe, nesta gente, é como uma caixa de velocidades de três mudanças: equipam-se assim, curtos, e praticam o mundo com essa caixinha sem querer mais. As circunstâncias e peso da vida fazem o resto. O que revela uma inteligência práctica fora do comum, há que lhes dar algum mérito. Nós, os bons leitores desgraçados, descobrimos mudanças onde nem sequer existem, e esse hábito de desdobrar cria-nos uma bolha psicótica. «Penso como um génio, falo como um idiota».

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    4. E o mundo não está melhor no que respeita a leitores e escritores. Isso é fácil de se constatar... O número de pessoas interessadas por ler pode ter aumentado, fruto de uma era globalizante de comunicação, mas lêem a borra... coisas que entrem a 100 e saem a 3000... no fundo, é o mesmo lamaçal de farpas descrebilizantes que a Cláudia fala, mas, agora, a uma escala assustadora...

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    5. Pois é, Diogo, depois também me lembro desses casos e de todos os escritores geniais que começaram a escrever, precisamente, para pôr comida na mesa. Mas isto: "A coisa é mais inata, como todas as grandes verdades e coisas, do que conjuntural e produto da formação." apresenta-se-me assim como uma inevitabilidade, como se existisse qualquer coisa como "os eleitos" e depois uma maioria de "artolas, inábeis no pensamento, sensibilidades de esfregona, não-curiosos" e não creio mesmo que seja assim, creio sim que existem excepções, das quais o Diogo fará parte, depois acho que é possível fazer nascer nas outras pessoas a vontade de "equiparem-se sem ser curto". Por exemplo, no meu caso, para além de ter começado a receber livros de presente desde cedo, estou convencida de que ter percebido o prazer que a minha mãe retirava da leitura de um livro, vê-la ali mesmo absorta, influenciou-me a escolher a leitura como um dos meus prazeres. Quanto ao mundo não estar melhor no que respeita a escritores, o que penso é que existiram uns tão bons que tramaram os outros, até acho que os clássicos inventaram tudo e deixaram quase nada para os que vieram depois conseguirem surpreender. Sim, é verdade que "ler a borra" pode ser a consequência de existir tanta coisa para ler, tanto ruído torna-nos um bocado baratas tontas, torna...

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    6. Obrigada pela tertúlia, Cláudia e Diogo. Disto é que eu gosto. (e doutras coisas também, claro)

      Cláudia, tenho a mesma ideia que tu relativamente à cultura instalada anti-leitura. Ou anti-falar corretamente, ou escrever. Também penso que as coisas estão a mudar, mas não me esquecerei que um dia fui gozada, em criança, por ter dito "pu-lo" e não "pusio" (nem sei escrever "pusio"), não era nada sexy falar corretamente. Mas apesar de tudo parece-me que a miudagem hoje lê mais (sim, eu sei, também é muito like em Instagram e coisas de superfície do género), anyway, tenho mais esperança nas gerações jovens (dentre os amigos das minhas filhas, a percentagem dos que leem alguma coisa é razoável).

      Eu descobri os livros sozinha, tal como o Diogo, na minha família lia-se muito pouco, e cresci a sentir falta de alguém com quem partilhar o que lia - como fui estudar engenharia, a coisa não melhorou muito no seio dos meus colegas de faculdade - enfim, claro que podia não ser assim, mas foi.

      Por isso percebo o Diogo, acho que quando descobrimos o encantamento pelos livros, precisamos também de o partilhar e é triste fazer a caminhada sozinhos, é quase revoltante. De qualquer modo, Diogo, eu até fico contente que haja os josés rodrigues dos santos e as margaridas rebelo pinto (esta acrescento eu, que considero muitos níveis abaixo do JRS) para pôr a malta a ler, é melhor que nada. A seguir pode ser que continuem e evoluam. E eu - devo dizer - li 3 livros do JRS e gostei muito de todos, aprendi imenso. Acho que se trata não propriamente de literatura, mas (já tenho dito isto) de manuais escolares disfarçados de romance (sendo que a linha do romance é sempre a mesma), e qual é o problema? que se aprende, aprende.

      Mas Cláudia, isso de os clássicos terem inventado tudo é que sei não. Podem ter inventado muito, mas há sempre espaço para alguém novo entrar. Olha o Afonso Cruz, goste-se ou não, é totalmente diferente, é novo, é extraordinário (para mim). A Hélia Correia, não será tão nova, mas é absolutamente diferente o que ela faz, nem sei como não tem mais projeção (ou se calhar sei, sabemos).
      E mais, a história é bom que vá ficando registada pelos tempos fora. Ando a ler "A Peste" de Camus e ali não há ninguém a falar ao telemóvel :-). Por exemplo. Ou seja, precisamos de livros com gente que tenha facebook, que atualize os tempos, que namore pela internet, que faça o que estamos a fazer aqui agora, essas coisas. :-)

      Grande conversa. E tão boa. Fica um abraço para os dois. Obrigada por terem vindo. Até me ficou a apetecer trazer café e bolinhos e dar corda a isto.

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  6. pela tua saúde te peço eu, Susana, que fluas sempre assim nestas narrações que têm carradas, carradas, de coisas boas.
    um beijo e bom fim de semana.

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    1. Muito obrigada, querida Mia. Assim farei, na medida do que a vida e seus deveres me permitir :-), quem dera o tempo chegasse para mais.

      Um beijo e bom domingo.

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  7. Olá, Susana :)
    Desconhecia o livro, mas conheço a escritora, de quem gosto muito.
    Tenho alguns livros e recentemente comprei (as livrarias online salvam-me) "Todos os Contos".
    A Susana tem, de facto, qualquer coisa de Clarice :)
    Beijinho

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    1. Olá Marta, que boa visita :-)

      Este livro é uma compilação de crónicas/textos que ela escreveu para um jornal semanal, ao sábado, no Brasil, entre setembro de 1967 e dezembro de 1973. E agora tenho de lhe contar que o dia em que eu nasci (que foi um sábado) está aqui neste livro :-)

      Um beijinho, Marta, e um abraço apertado também.

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