a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/12/2014

De barriga cheia

Atei o avental atrás das costas. Arregacei as mangas, peguei na sapateira que já vem cozida, cheirei-a, marisco cheira-se, eu cheiro tudo.

Arranquei-lhe as patas uma a uma, situação que não apreciei levar a cabo por aí além, felizmente não são dezenas. Depois abri-lhe a barriga, retirei-lhe o interior. Na internet aprendi a fazer o recheio, mas fiz outro; não tenho metade dos ingredientes e agora já não há tempo de ir comprar os pickles nem o molho inglês nem a mostarda nem o ketchup nem molas para a roupa nem pasta de dentes.

Misturei o que havia, o ovo cozido também, que gosto me dá cortar tudo pequenino em vez de pôr na picadora e fazer uma barulheira que assusta os pássaros, detesto barulheiras e gosto tanto de pássaros.

Depois, sapateira de barriga cheia outra vez, lavo as mãos e limpo-as mal, está na hora dos telefonemas às irmãs que não são poucas, pego no telefone, sento-me. O meu dedo escorrega na tecla grande que pesquisa a lista telefónica da minha vida e em vez de ligar à minha irmã Ana, ligo à vizinha Ana do sétimo andar que também me deseja um óptimo ano de dois mil e quinze e fica muito sensibilizada por me ter lembrado dela. Com muitas irmãs ainda para desejar coisas boas para o ano que está aí a rebentar, limpo melhor as mãos, esfrego-as bem no avental que isto tem de ficar feito hoje. Ficou.

O fogo na lareira está bem atiçado contra os graus lá fora, embora poucos, muito menos que as irmãs, se calhar está lá um grau sozinho, coitadinho, que não lhe telefono, e é que isto não tem graça nenhuma, nem isto nem ontem não ter avistado veado nenhum quando cá cheguei à serra, as horas iam altas na noite, o ano está a chegar ao fim, a sapateira de barriga cheia e eu ainda de avental.

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