a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

07/12/2014

Maria Lúcia

Não sei se era natal naquela noite, sei que estava frio.

Maria Lúcia, viúva conformada com a sombra de um amor que o foi pleno, deita-se normalmente tarde. 

Mulher devota, crente num deus bom, não concebe naturalmente intenções outras que não pares das suas. Esquece-se de cuidar de males, muito menos esperar que lhe escorreguem para dentro da sua existência já longa mas frágil, contada em mais de sete décadas.

Deitava-se tarde à quarta feira e à sexta, ao domingo e em todos os dias.

A única luz que deixa brilhar nos serões solitários do seu apartamento antigo, num rés-do-chão de Lisboa, é o quadrado do ecrã de televisão. Dali toma, transferido, o consolo levado com o marido, o ecrã luminoso conta-lhe as histórias que lhe embalam os dias e desconfio que também os sonhos.

Na sala, os móveis cheiram ao cansaço de uma madeira escura, indefinida, colhida em florestas antigas onde imaginei ter havido duendes e elfas a tecerem os séculos, hoje decerto cruzadas por auto-estradas vazias. Os napperons que lhe saíram das mãos em décadas passadas, quando a vista ainda podia, filha, estão dispostos pelas superfícies nuas, que nudez é assunto para se ocultar em presença da Nossa Senhora, ali, de vigia na cristaleira.

As pernas cobre-as com a manta velha, que o aquecedor gasta muito. E é assim que, naquela noite em que não sei se era natal mas sei que estava frio, parece que ouve um barulho abafado.

Põe-se à escuta subtraindo mentalmente as vozes do filme que corre no ecrã e confirma: uma restolhada lhe chega aos ouvidos, esses não a enganam.

Afasta a manta, levanta-se da poltrona e, sem acender outra luz, sai da sala e entra no corredor de acesso ao quarto, parece que o barulho é dali.

- Não teve medo, Maria Lúcia?

- Medo de quê, filha? Não tive medo, mas quis ver o que era.

Agachado entre a parede branca e os pés da cama feita da madeira retirada aos mesmos duendes e elfas, estava um homem. Maria Lúcia viu-lhe os olhos brilhar à luz da televisão que fez com ela o corredor e ali ficou a secundá-la.

- O que está o senhor aí a fazer?

- Nem então teve medo?! – eu estava admirada.

- Não, filha, ele é que parecia assustado.

Disse-lhe para se levantar e pegou-lhe nas mãos, estavam frias.

- Tem as mãos frias. Eu sopa não tenho, mas venha até à cozinha e faço-lhe um café, para aquecer.

Ele obedeceu. Era um homem novo, podia ser meu neto, filha. E estava com frio.

O homem bebeu o café e agradeceu, palavras ouviu-lhe poucas. Ela acompanhou-o à porta e disse-lhe que da próxima vez não saltasse pela janela, que se podia magoar, tocava a campainha e ela oferecia-lhe sopa, se tivesse. Se não, havia de ser outro café.

Hoje de manhã, enquanto metia a roupa na máquina para lavar, o sol que me entrava pela janela bateu-me nas costas e eu lembrei-me dela. Por uma coincidência, por ser quase natal ou por haver duendes e elfas nestas linhas, Maria Lúcia faria hoje anos se fosse viva. Da história mudei um bocadinho o seu nome e não mudei mais nada.

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