Não sei se era natal naquela noite, sei que estava frio.
Maria Lúcia, viúva conformada com a sombra de um amor que o
foi pleno, deita-se normalmente tarde.
Mulher devota, crente num deus bom, não
concebe naturalmente intenções outras que não pares das suas. Esquece-se de
cuidar de males, muito menos esperar que lhe escorreguem para dentro da sua
existência já longa mas frágil, contada em mais de sete décadas.
Deitava-se tarde à quarta feira e à sexta, ao domingo e em
todos os dias.
A única luz que deixa brilhar nos serões solitários do seu
apartamento antigo, num rés-do-chão de Lisboa, é o quadrado do ecrã de
televisão. Dali toma, transferido, o consolo levado com o marido, o ecrã
luminoso conta-lhe as histórias que lhe embalam os dias e desconfio que também
os sonhos.
Na sala, os móveis cheiram ao cansaço de uma madeira escura,
indefinida, colhida em florestas antigas onde imaginei ter havido duendes e
elfas a tecerem os séculos, hoje decerto cruzadas por auto-estradas vazias. Os napperons
que lhe saíram das mãos em décadas passadas, quando a vista ainda podia, filha,
estão dispostos pelas superfícies nuas, que nudez é assunto para se ocultar em
presença da Nossa Senhora, ali, de vigia na
cristaleira.
As pernas cobre-as com a manta velha, que o aquecedor gasta
muito. E é assim que, naquela noite em que não sei se era natal mas sei que
estava frio, parece que ouve um barulho abafado.
Põe-se à escuta subtraindo mentalmente as vozes do filme que
corre no ecrã e confirma: uma restolhada lhe chega aos ouvidos, esses não a
enganam.
Afasta a manta, levanta-se da poltrona e, sem acender outra
luz, sai da sala e entra no corredor de acesso ao quarto, parece que o barulho é
dali.
- Não teve medo, Maria Lúcia?
- Medo de quê, filha? Não tive medo, mas quis ver o que era.
Agachado entre a parede branca e os pés da cama feita da madeira retirada
aos mesmos duendes e elfas, estava um homem. Maria Lúcia viu-lhe os olhos brilhar à luz da
televisão que fez com ela o corredor e ali ficou a secundá-la.
- O que está o senhor aí a fazer?
- Nem então teve medo?! – eu estava admirada.
- Não, filha, ele é que parecia assustado.
Disse-lhe para se levantar e pegou-lhe nas mãos, estavam
frias.
- Tem as mãos frias. Eu sopa não tenho, mas venha até à cozinha e faço-lhe um café, para aquecer.
Ele obedeceu. Era um homem novo, podia ser meu neto, filha.
E estava com frio.
O homem bebeu o café e agradeceu, palavras ouviu-lhe poucas.
Ela acompanhou-o à porta e disse-lhe que da próxima vez não saltasse pela
janela, que se podia magoar, tocava a campainha e ela oferecia-lhe sopa, se
tivesse. Se não, havia de ser outro café.
Hoje de manhã,
enquanto metia a roupa na máquina para lavar, o sol que me entrava pela janela bateu-me
nas costas e eu lembrei-me dela. Por uma coincidência, por ser quase natal ou
por haver duendes e elfas nestas linhas, Maria Lúcia faria hoje anos se fosse
viva. Da história mudei um
bocadinho o seu nome e não mudei mais nada.
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