a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

08/12/2014

Tempo

Cheguei-me ao rio. A lua reflecte-se ali a meio caminho entre esta margem e aquela, mostrando-me um carreiro de gotas todas juntas e eu escolhi uma, acolhi-a na mão, bebi-a. Sabe um nadinha a mar.

Começando a prosa com tanta poesia até parece que, em ganhando balanço, vai derreter um ou outro coração mais adiante e mais natalício ou mesmo distraído. Pois assim não será, que esta prosa serve-se azeda.

Hoje tinha pensado morrer. Para isso, fui comer uma refeição do tipo porcaria servida em recipientes de cartão armado ou de plástico em cama de tabuleiro revestido com papel total e visualmente poluído com tretas que não valem nada e ainda a factura debaixo do copo da bebida açucarada, das piores.

Sentei-me na esplanada dando as costas ao sol, a carregar, a ver se vem a mim um resto de energia e eu pego.

Uma mulher muito gorda fuma sentada no meu campo de visão e enternece-se com os pombos, anda aqui uma legião deles a debicar nos restos deixados nos tabuleiros abandonados. Eu não me enterneço com nada, como esta porcaria em cima dos materiais perecíveis depois de mim e da factura, que é sem contribuinte, e acaba de voar o celofane onde vinha metida a palhinha.

À minha frente está a revista do jornal de sábado que trouxe comigo e que me quer dar ideias para presentes de natal, perfumes, meias de lã, mas eu não quero estas, as minhas é que são boas ideias.

Entretanto, com o sol a carregar-me nas costas devo ter enfim pegado, reparo que neste cenário nem os olhos mais benevolentes podem registar uma centelha de beleza e uma batata frita desolada voa por cima da minha cabeça e vai embater na mulher que fuma e se enternece muito, olha que lindos, vê-se mesmo que gosta dos pombos. Eu era as gotas de água em carreiro a correr ao luar junto ao rio, mas doçuras não são para hoje.

Acabei com aquilo, o meu lixo levei-o para fora do alcance do vento e recolhi a casa com o saco do jornal na mão.

Pelo caminho percebi que afinal não podia morrer hoje, havia ainda a árvore de natal para fazer e uma pilha de roupa a tratar.

Fica para amanhã, então. O tempo que me vou subtrair corto-o em pedaços: anos para a família, meses para os amigos e semanas para o porteiro lá da empresa, que fica sozinho na noite mágica a vigiar a entrada de ninguém. Embrulho todos em papel muito bonito, ponho um laço vermelho com o brilho que lembra o luar no rio e ofereço-os pelo natal, isso sim.

Cá perfumes e meias de lã. Da falta destes não se ouve alguém queixar.

Já da falta de tempo, sim. 

Muito.

Mas pouco espero que demore a reflexão do amigo Xilre. Muito grata estou eu e, não tarda nada, saudosa.

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