Dia.
Subimos lado a lado a alameda dos ciprestes a esta hora
inundada de sol. Ela estremece de um frio que eu sei vir-lhe mais de uma
memória com muitos espinhos que deste cortejo fúnebre, vejo-o diluído em
lágrimas que lhe trazem mais luz aos olhos verdes. Ao caminhar, imprimimos no
alcatrão novo o rasto das nossas sombras, que são irmãs. Escolhi fazer este
trajecto lento ao seu lado, mantenho os olhos secos e conto-lhe uma história
enquanto, por cima de nós, os aviões são cuspidos para o céu.
- Ainda não te contei esta história. Eu tinha catorze anos e
gostava muito de uma música de que conhecia o título. Entrei com o pai numa
loja de discos onde ele ia muito, comprava-os lá.
- Uma discoteca.
- Exacto, uma discoteca. E pedi ao senhor da loja que
pusesse a tocar a música para a mostrar ao pai. Era o “More Than This” dos Roxy
Music, conheces?
- Não, acho que não…
- É natural, se eu tinha catorze tu terias sete, brincavas
com as Barbies… Bem, aos primeiros
acordes, o pai disse logo que o comprava, pareceu-me que adorou a música e eu
fiquei toda contente. Ouvi milhares de vezes aquele vinil.
Fizemos o resto do caminho na companhia das suas lágrimas silenciosas,
nascente daquela memória antiga que este contexto fúnebre desenterra. Eu queria
tirar do coração da minha irmã a dor que vive tão fundo nela.
Quando saímos do crematório, a alameda dos ciprestes
continuava inundada de sol e os aviões seguiam cuspidos ao céu.
Noite.
Saí da reunião e fiz-me à estrada para chegar a horas ao jantar
no bar da praia. A luz no painel de instrumentos insiste na ideia de meter
combustível, pisca com energia cadente e eu faço contas aos quilómetros a ver
se posso abastecer no regresso. Posso. O telemóvel também dá alarme, está quase
sem bateria e tenho ainda dois telefonemas a fazer pelo caminho. Faço. Lembro-me
entretanto que não há pão em casa nem tempo para o comprar. Paciência. Há
bananas.
Chego com dez minutos de atraso, a Catarina já tem uma
imperial e amendoins à sua frente. A praia nas noites frias de inverno também
existe, mas o bar está quase deserto.
- Caty, importavas-te de não parecer sempre teres vinte e
oito anos, importavas?
Ela ri-se e abraçamo-nos. Não nos vemos há um ano e estes
jantares são praticamente sagrados.
Duas imperiais e dois hamburgueres depois, nada gourmet e tudo à grande, não vamos ao
engano, despedimo-nos com desejos de boas festas e no regresso a casa parei na
estação de serviço. Ao retirar a agulheta para abastecer, o aviso esganiçado no
altifalante cliente da bomba seis, o
serviço está em pré-pagamento, saiu automático e eu dei um grande salto,
não gosto de dar grandes saltos. O
pré-pagamento inclui tentativa de me venderem dois chocolates Toblerone maiores que, deixa ver,
maiores que o meu úmero e ainda coisinhas estranhas para fazer pega monstros
por dois euros e noventa e nove.
- Produto nacional, muito bom, quer?
- Não. Quero pão, tem pão?
No resto do caminho pus a tocar o CD dos Roxy Music,
descendente do vinil dos meus catorze anos, que trago no carro. Tocou em repeat os acordes que pedi ao pai
para ouvir naquela tarde em que tu brincavas com as Barbies e nenhuma de nós sabia ainda o
que era morrer.
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