a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/12/2014

Chocolate quente

Normalmente não preciso. Mas de vez em quando, talvez me leve distraída o dia ou sou atravessada por neutrinos dos maus, afogo-me. É um buraco.

Chega-se a mim, e eu, donde vieste buraco?, interrompe-me o estado completo, passo ao incompleto, sou engolida, é isto, olha, precisava mesmo agora que me dissesses assim, com cara séria, olhos nos meus, os teus cheios de luz, eu acho que isso é luz mas um poeta é que diria o que é, não te preocupes.

- Não te preocupes.

E eu obedecia enquanto bebia um pedaço dessa tua luz que se calhar é chocolate, também bebo chocolate, mas um poeta é que sabe. Inspirava fundo, então, voltava a completar-me e depois tu podias ir embora outra vez.

No interstício – aos séculos que não escrevia esta palavra! – no interstício de tempo que medeia, fico-me afogada no buraco que me engoliu e enfio nos ouvidos uma música das que, com um jogo de roldanas bem orientado, me puxará a alma de cimento para cima, ali à altura da bandeira lusa do parque, aquela que acena aos satélites, bem gostava de saber a área de pano que ali está e até havia de sorrir, mesmo que em tons de amarelo.

Lembro-me da miúda que se enganou na coreografia de sábado, no espectáculo de natal que fizemos. Chorou o resto do tempo, dançou em lágrimas, soluçou até depois de tudo acabar e nos enfiarmos na chuva da tarde.

- Que idade tens, querida?

- Onze – arrancou ao pranto.

- Não te preocupes – passei-lhe a mão pelo cabelo ainda montado em carrapito - só não se engana quem não faz nada. Não viste que eu também me enganei?

Levou abraços de cada uma de nós, consolo foi o melhor que pudemos, melhor, mas ineficaz se mostrou, ela não se perdoou o engano e o tempo não se rebobina, ou tu isso consegues?

- Não te preocupes – precisava de lhe passar a mão outra vez pelo cabelo, mesmo que o carrapito já lá não esteja, nem a fitinha de cetim rosa, e assim enchia este buraco, saíamos as duas dele e a chuva da tarde continuaria a cair.

Mas agora, engolida assim, longe da tua luz que deve ser chocolate quente, a música que meti nos ouvidos não funciona, estragou-se com os neutrinos maus, a minha alma de cimento afunda-se e eu precisava.

- Não te preocupes.

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