a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

21/07/2015

Não tenho mãos azuis

O dentista andava há imenso tempo com a conversa dos sisos, que a minha filha precisava de se ver livre dos dentes do siso, dois. Mas eu não sou de contrariar a natureza e a filha é minha, se os dentes vieram deixemo-los estar, coitadinhos, e isto fez muita conversa no corredor que dá para a sala de espera, mesmo em frente ao cartaz do miúdo sardento a sorrir com uma escova de dentes na mão, eu a optar por sair já dali e ele a querer convencer-me, tem de ser, está a ver a arcada inferior e uma data de coisas não sei quê (a arcada inferior da minha filha é linda, naturalmente). Isto era assim de todas as vezes que lá íamos – quem tem filhos vai muito ao dentista.
Mas depois de tantas edições do assunto, creio que cruzámos pelo menos quatro estações de um ano, sucumbi àquilo, vá, se a miúda precisa, em termos médicos, de ter livres os lugares dos dentes do siso, vamos embora e fomos, há dias (isto é-me difícil e por uma questão de me manter em estado de vigília total, limitarei os pormenores, não vá a cabeça cair-me na fila de teclas zxcvbnm e encher o buffer, piiiiiiiiii).
A situação deu-se em sala própria, tinha cirurgião, tinha assistente, tinha eu sentada na cadeira atrás dela, uma ou duas vezes estico o meu braço, ergo-me um pouco de forma a chegar-lhe, fazer-lhe uma festa na cabeça, a mãe está aqui, amor, e o cirurgião ri-se com a seringa gigante na mão e confirma, a mãe está ali.
Não demorou nada, saltamos detalhes rocambolescos e passamos já à sala de espera, onde se encontra o balcão da recepção e eu sou chamada a receber instruções, a minha filha sem dente e com um volume de gelo na cara, senta-se, está esbranquiçada, eu mantenho um olho nela, claro, pode precisar de mim.

Põem-me uma lista à frente, em cima do balcão, tem quinze instruções e a primeira é sobre a compressa que está lá dentro da boca da miúda, chegando a casa tira, a segunda diz que ela não mostra a costura a ninguém porque vai abrir e a instrutora simula a situação na própria boca, para eu compreender, os pontos podem rasgar, ai, eles pensam em tudo, aliás simula mais, fala com detalhes mas eu já vi que tenho pouco tempo, olho para trás e a minha filha sorri-me como pode, melhor, continuamos, a medicação, este só toma se as dores forem fortes, ela não vai ficar sozinha em casa, pois não? pode desmaiar, diz a instrutora olhando para a carinha linda que ali está, a mão segurando o gelo na face. Não, eu fico com ela, claro. Então vamos lá, os horários, o elixir, o gel que põe com o dedo e com jeitinho em cima da costura, ai, a escova para depois, a comida, carne e peixe, dê-lhe carne e peixe, ovo, nada de ficar só a iogurtes, tudo muito partidinho, amanhã ligamos, se inchar isto, se doer muito aquilo, vai dormir com almofadas debaixo da cabeça, mas eu já estou agarrada ao balcão com as duas mãos e ainda faltam cinco linhas das instruções, não sei se consigo ir até ao fim, baixo a cabeça, sei que ajuda, tenho um bocado de vergonha de ser assim, pode ser que me aguente, concentro-me, a voz da instrutora está a ficar longe e os meus ouvidos começam a apitar, bolas, aperto o balcão com força e tento ler as linhas que faltam, mas a palavra compressa e aquela coisa de os pontos, ai, os pontos poderem abrir, noto as minhas mãos desfocadas e azuis, não tenho mãos azuis e aí concluo que já não estou em condições de ouvir o resto. Evitando desaparecer verticalmente do campo de visão da minha zelosa instrutora, procuro a cadeira mais perto, está a dois passos, vou conseguir, então mãe? que tens? Concentro-me e faço acertar o rabo no assento, excelente. Já passa, desculpem, isto já passa. Com a mão livre, a minha filha traz-me copos de água, um pacote de açúcar vem lá de dentro e é despejado para debaixo da minha língua, aí absorve depressa, diz-me a instrutora, querem deitar-me.
Mas cabeça para baixo é o suficiente, meto-a entre os joelhos. Para acelerar o processo, pego numa revista que está ali ao lado, ocupo a cabeça com coisas mais fáceis e leio que a Sara Prata, por estar magra, não gosta que lhe falem em anorexia, que não se brinca com a anorexia. Concordo com a Sara, que mesmo magra como está me deu uma mãozinha valente. Dez minutos depois estava pronta, levantei-me e fomos para casa.


(afinal o teclado safou-se, o buffer também e quem ouviu o resto das instruções enquanto eu lia revistas foi a minha filha, de gelo na cara e o outro dente do siso para tirar mais tarde, ai)

10 comentários:

  1. Querida Susana Rodrigues,
    É uma injustiça que as pessoas a quem dá para ficarem com as mãos azuis sejam objeto de mimo enquanto que aquelas a quem dá para rir sejam alvo de olhares reprovadores. Humpf.
    Bom dia,
    Outro Ente.

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    1. Querido Outro Ente,
      Às vezes temos de viver com injustiças, pois temos. Felizmente há o "humpf", que fica sempre tão bem.
      Boa noite.

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  2. Querida Susaninha, enquanto lia as instruções consigo, fiquei também com uma mão azul de tanto apertar o pobre do rato com força. Coração de mãe sofre!

    Um beijinho e as melhoras da filhota linda :)

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    1. Querida Miss Smile, o lado bom das mãos azuis é que largam essa tonalidade, mal a gente volta ao estado fundamental. :-) (sofre um bocado, pois sofre)
      Outro beijinho e obrigada :-)

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  3. Então, mas a miúda é que foi submetida ao procedimento cirúrgico e é a ti que te dá o fanico?
    (A não ser que ela pedisse, eu preferia não assistir. Assim como prefiro sempre ir sozinha às consultas e fazer tratamentos.)
    Quando tirei os sisos (não tinha espaço), tive de ser submetida a um procedimento um pouco complexo e não foi possível levar pontos.
    Tudo se resolve... Sem dramas, Susana.

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    1. O problema não foi assistir, foi as instruções (sim, sou estranha, eu sei). E queria eu trabalhar com médicos!
      Não foi um drama, já me é habitual :-)
      Beijos, Isabel.

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  4. A instrutora deve ter ficado desiludida com a aprendiz de enfermeira. :)))

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    1. Muito. Mas ela já devia saber, porque foi a terceira vez que me viu atirar-me em voo picado para cima de uma cadeira, eu azul, a cadeira não sei.
      :-)

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  5. A Susaninha é uma querida. Adoro a maneira despachada, sensata e sentida como escreve, independentemente da cor das suas mãos.
    Boas melhoras e comece a treinar para o próximo siso. :)

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    1. A M D é que é uma querida. E eu adoro os seus comentários.
      Muito obrigada! :-)
      (já comecei, glup...)

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