a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

17/07/2015

Por um poeta assim

Sento-me no banco de madeira no cais de embarque da estação de metropolitano, cais de embarque soa a navios mas este é na estação de metropolitano; ainda faltam quatro minutos e meio para o comboio, dá tempo.

Retiro o caderno de dentro da mala, abro-o e tento escrever isto logo a seguir à data. Três dias sem carro e os meus sapatos estão de acordo com o dinheiro que dei por eles (ainda por cima são lindos), bem à altura dos tantos quilómetros que nos viram passar ao sol.

Percebi em criança que a chegada da composição (chamam composição ao comboio, está bem) vindo largada de dentro do túnel escuro recortado à justa, a rugir em toda aquela alta tensão e em redução contínua de velocidade, me causa impacto. Um senhor impacto. Nessa altura sustinha a respiração com a mão na da minha avó (era sempre ela a levar-me ao dentista) temia que o maquinista não calculasse aquilo bem, o comboio tinha de parar alinhado com a plataforma sem ficar nenhuma carruagem de fora, o túnel deve ser medonho. Mas, admirável: nunca vi um maquinista falhar.

Os quatro minutos e meio estão a chegar ao fim do nosso programa, boa noite muito obrigada a todos e fecho o caderno. Enfio a caneta nas argolas, esta pequena composição na mala e alegro-me.

Dez segundos depois ele aparece, recortado no túnel com uma tesoura afiada e continua a fazer-me isto, esta impressão, este sentir-me pequena e depois grande e depois pequena, em movimento, parada e depois em movimento. Está-se mesmo a ver onde vamos, não está?

Falta-me, há décadas, um poema para isto. Um mecanismo todo emocional que disponha a composição a ouvir-se, adivinhar-se, a surgir no túnel, chegar, a travar, imobilizar-se com a precisão cirúrgica com que se enfia a linha no buraco da agulha. E depois a respiração, peitos a subir, a paralisar, o tempo suspenso, o relógio do mostrador, esse, onde fica, também pára?

Já em casa, depois de tirar os sapatos, fiz uma sopa de nabiças bem encorpada, frutada na medida em que leva abóbora, vitaminada pelo resto que tem, aromática até ao fim do corredor e depois, enquanto suspiro por um poeta assim, capaz de coisas daquelas, como um prato cheio.

(a dica da respiração, peitos a subir, já a dei, não é?)

11 comentários:

  1. Susana, os poetas são mais do género, "aromáticos até ao fim do corredor"... só para inspirar, mas nota-se!

    Bom fim-de-semana,
    Um beijinho.

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    1. Ah, Teresa, os poetas não agarram no lado metalomecânico da vida! Que é tão necessário à gente! :-)
      Um beijinho e bom fim de semana para ti também.

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  2. Continuo a não saber explicar o medo/atracção que a linha do metro tem em mim. Rara é a vez em que não imagino alguém a empurrar-me lá para baixo. É como se aquele dentado interminável de ferro tivesse vida. (Será da escuridão dos túneis?)

    Beijos

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    1. Querida G., é exactamente por isso que precisamos de um poeta, para nos ajudar a ver a poesia desse medo, dessa atracção. Eu gostava. :-)

      Beijos de volta.

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  3. Andei diariamente de comboio durante vinte e cinco anos, dezoito dos quais a fazer 140 quilómetros. Se já gostava de comboios (de barcos, também; uma perdição!), passei a ter com eles uma relação do tipo visceral. Ao ponto de, as vezes que mudei de casa, impor como condição ficar muito próxima de uma estação de comboios. Vejo-os das minhas varandas e sei de cor os avisos de entrada dos pouca-terra.
    Li e escrevi muito em comboios.
    Actualmente, e a seguir ao barco, é o meu meio de transporte preferido.
    Seria de estranhar que no final não viesse uma iguaria para compor o estômago! ;)
    Beijo, Susana.

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    1. Eu percebo muito bem essa tua preferência, Isabel. Os comboios transportam um mistério, acontecem coisas nos comboios. Podem até mudar-nos o sentido da vida. :-)
      Outro beijo.
      E a sopa sim, ficou deliciosa, mas só eu é que acho...

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  4. Querida Susaninha, padeço de um medo inexplicável de linhas de metro e de comboio, semelhante ao que a G. descreve. Sempre que algum se aproxima da plataforma, coloco-me em segurança e estremeço de medo, receando que alguma daquelas pessoas, que ciranda por aquele formigueiro de gente, possa cair ou ser empurrada para a linha. Por mim, sempre que uma composição se aproximasse da plataforma, ninguém teria ordem para se mexer até esta parar. É que já vi coisas terríveis.

    Um beijinho e desculpe o desabafo

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    1. Minha querida Miss Smile, não há nada de que se desculpar. Eu concordo que a segurança nas linhas é parca, especialmente se houver multidões a entrar e a sair. A minha mãe, quando eu era muito pequena, entalou o pé entre a plataforma e o metro. Mas os gritos das pessoas não deixaram o maquinista andar e ela conseguiu soltar o pé. Hoje em dia esse espaço é muito mais pequeno, já não cabe lá um pé.
      Outro beijinho e bom fim de semana.

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  5. Metro, métrica, ritmo, poesia mas não a metro, estações, nomes de estações, se inventados por poetas (por esses que são assim), podiam muito bem ter nomes como: "Antes de as ervilhas se apaixonarem", (imagina o diálogo: onde sais? "Antes de as ervilhas se apaixonarem") outro nome de estação podia ser "verão" com sabor a gelados. Não quis sair daqui mais uma vez sem deixar nada em troca, então fiz este "ratatouille sem manga" e sem nenhum legume e verdade seja dita, sem jeito nenhum, mas tem afeto no tempero, lá isso tem, "sem manga", mas com afeto.
    Beijinhos Susana e um excelente fim de semana.

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    1. Sabes uma coisa, Cláudia? És maravilhosa. Eu um destes dias faço um blogue com os teus comentários, faço faço.
      Fizeste um ratatouille delicioso, as ervilhas prestes a cair em amor ( do inglês, claro) ficaram tão bem.
      Beijinhos e um magnífico fim de semana para ti também.

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    2. Maravilhoso é chegar aqui e ler esta resposta. Maravilhosa é essa generosidade, essa capacidade de ver o melhor lado dos outros e puxar por ele.
      Susana Rodrigues, já disse que gosto muito de ti, não já?, já, já disse, pois digo mais uma vez. E tenho esperança de que essa tua maneira de ser, de estar na vida, seja contagiosa.
      (e não respondas, neste caso, faço questão de ficar com a última palavra) :-)

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