a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/08/2014

O terraço

Estou aqui estou de mau humor.

O verão é uma canseira, as férias principalmente. Forçamo-nos a estar bem, felizes, muito felizes, a gozar e a descansar e a combinar coisas e a ir a praias apinhadas de gente, nas quais o mar de carros estacionados é mais extenso que o verdadeiro e eu tenho tendência a preferir estar a trabalhar, mas não me atrevo.

No dia do almoço com a família quase toda, que toda não cabe, fui em busca das sardinhas prometidas, que boas que costumam ser, mas a presença em massa de emigrantes na zona tinha levado tudo e hoje só veio uma caixa, menina, mas tenho congeladas. Douradas, então, se faz favor. E, depois, que a peixeira não estava pelos ajustes para arranjar uma legião de douradas, a estúpida, lá teve a minha mãe de o fazer por mim, que eu não dominava a arte, e noto que o pretérito imperfeito foi utilizado porque agora já domino, é que lhe observei bem as voltas, minha rica mãe.

Meter gasolina também. Também o quê?, também contribui: enquanto a funcionária da gasolineira enche o depósito, noventa e cinco se faz favor, observo dois homens sentados à única mesa da esplanada daquilo, em cima de manchas de óleo,  cães escanzelados deitados no chão, caixotes do lixo a abarrotar e a receber a visita de todas as moscas do país, de certeza, observo os dois homens, a ver se não me perco, que comem tremoços e bebem cerveja e se riem muito quando a empregada que os atende vem debicar tremoços do prato deles e ali fica, a falar com a boca cheia, e a rir, com os pés sujos nos chinelos, depois limpa as mãos às calças de flores e desaparece outra vez na espécie de loja, num correr desajeitado, vai buscar mais tremoços?, estou aqui estou de mau humor, já disse.

E é a barulheira das festas das nossas senhoras. Dos remédios, da boa viagem, das dores, dos aflitos, do rosário, do amparo, das águas santas, do socorro e já chega, não queremos mais.

Apetecia-me escrever que o que me faria mesmo feliz era encontrar a festa da nossa senhora da internet que já está a fazer falta, qual é o problema? Mas não, pode ficar mal.

Vou mas é apanhar a roupa que já secou, terminar de esfregar a grelha, plantar o pé de loureiro que a minha irmã trouxe no dia das douradas, varrer o terraço, descascar as batatas para o jantar, tudo metido nesta tarde de férias que escorre serena vestida de azul, emoldurada pela linda paisagem verdejante à minha volta e, vais ver, esqueço-me das ânsias em que me pões e fico de bom humor outra vez.


(se um dia eu conseguir ser mais rápida que a luz, tenho tempo de ficar na foto que eu própria tiro, por enquanto fica só o lugar em que me sentei a escrever isto; a prova é o terraço, que precisa de ser varrido)

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