a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

12/08/2014

Retrovisor

Aconteceu-me, há dias, uma coisa surpreendente.

Já o sol tinha iniciado a sua descendente diária, conduzia eu o meu carro pelo centro de uma povoação beirã rumo ao supermercado do costume, o que não é, quase nunca, tarefa que me eleve o estado da alma aos píncaros. Mas desta vez traziam-me as circunstâncias um roçar de tristeza na sua vertente irritação, por motivos alheios a este blogue.

Num momento vazio de constatação distraída, pela milésima vez, sobre quão horrendos são os prédios desta rua (arquitectos, onde estavam vocês), a minha atenção é desviada para três jovens que caminhavam no passeio do meu lado direito, jovens que deviam rondar os quinze, dezasseis anos. Um deles, uma rapariga, arremessa, voluntaria e veementemente, com um movimento inequívoco do seu vigoroso e jovem braço, um papel amachucado para a via de rodagem, que veio aterrar no alcatrão mesmo à minha frente.

Olhar rápido ao retrovisor, não vem ninguém atrás. Paro, então, ao lado dos jovens, abro a janela do outro lado e grito para a miúda.

- Ó menina, apanhe o papel se faz favor, não se deita lixo para o chão!

Sem dar tempo de ouvir nomes de locais recônditos para onde esperei que ela e os amigos me mandassem, nem ver dedos esticados na direcção do céu, ou coisa assim, arranquei com a sensação de que chovi no molhado.

Pois assim não foi.

O espelho retrovisor mostrou-me que a rapariga se deslocou ao meio da estrada e apanhou o papel do chão.

Apaziguou assim, sem saber, a tristeza que eu trazia.

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