a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

03/02/2015

Abraços, sim, beijos e um farrapo perdido de bacalhau

Começaram a chegar. Eu estou na cozinha a terminar a salada que arranjo dentro da taça de cristal oblonga e o Rodrigo vem a correr agarrar-se às minhas pernas, esta parte é inventada que ele fica é ao colo da mãe, mas inventar aqui pode-se, Rodrigo dá um beijo à tia. Tomo nos braços estes dois anos de gente e ele enrola os dele tão pequeninos à volta do meu pescoço, empenhado lambuza-me a cara com um beijo também oblongo e depois desmancha o abraço e olha-me sério com a expressão de estás-a-gostar-do-efeito? E esta é tão boa que eu não a podia ter inventado, foi mesmo assim, dá outro abraço à tia, caramba, começas bem.

Ponho o miúdo no chão com vontade de lhe dar mais uns apertos, suponhamos, torno aos meus afazeres e chamo a Sofia para ajudar com os queijos, preciso de uma tábua de queijos. O Tiago abre as garrafas de vinho e a Marta está tão crescida. A minha mãe chega com o bolo de anos e a caixa vem pingada de sangue, mãe o que foi? Entalei-me na porta do carro, olha para isto, tens aí um penso? Alguém vai buscar um penso à avó? A salada já está, Miguel, levas para a mesa? E de caminho chama a tua prima; Mafalda, leva os sumos. A Maria e a Beatriz vêm de igual, nestas idades ainda se pode, beijo à tia meninas, ponho-me de cócoras e recebo a encomenda nas faces, dois abraços simultâneos, um maior que o outro, levanto-me, o Tomás já tem barba, estás bonito, Tomás, e o Diogo, como vai a escola, Diogo? A minha mãe volta de penso enrolado no dedo e dá cá um abraço à mãe, sou eu a ser esmagada agora, que viçosa está a minha mãe.

Quem quer sopa? Toma, Lourenço, leva também a do tio Luís. Mateus, anda cá, já me esqueci em que ano estás, quarto?, sim, quarto, o que gosto mais é de saber história, tia, as invasões francesas é brutal, ui Mateus, isso é de homem!, toma a sopinha, amor. Quem falta? Meninas, a sopa ao avô e às tias, levem lá.

Enfio um prato cheio na mão da minha irmã mais nova, estás magra, miúda, come (magra mas linda). Tiro a lasanha do forno, está quente e cheira bem, cuidado, amor, não te queimes, vamos embora, trazes essa colher grande, Maria?, sem correr! Quem me serve um pouco de vinho? O queijo com gengibre foi barbaramente atacado, a bola de carne que a avó fez com farinha integral está daqui (na ilustração vê-se bem que agarro e puxo a orelha direita enquanto digo daqui), mas continuo a não querer uma bimby, não me ofereçam uma bimby, já me bastam as snapchats a toda a hora enviadas aos amigos das minhas filhas, já não se pode andar xepa em casa, não me apanhas na foto, ouviste?, vê lá o ângulo disso.

No fim, a sala deserta exibe um chão povoado de bocados de bolo de chocolate esmagados, pedaços muito pequenos de batatas fritas, uma mini bola de gelado derretida, um farrapo perdido de bacalhau, só um e, para fechar, dois bocados de tostas, estas não pisadas caso contrário eu teria escrito dois montinhos suspeitos de migalhas, resultado, vassoura e pá que já é tarde para o aspirador e amanhã é dia de trabalho.

Que hoje foi de abraços. Muitos.

 (e de mudar nomes, uma trabalheira)

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