Estamos os dois
velhos, mas só a mim custa fazer o corredor do nosso apartamento, que é
comprido. De manhã chego à cozinha cansada. Acendo a luz e o interruptor, que é
antigo, faz o clique parcialmente oco dos interruptores antigos. Preparo-lhe o
pequeno almoço, a chávena do café com leite fica cheia até à gota antes de
entornar, sempre foi assim.
Não gosto de o
ouvir sorver o leite mas consegui habituar-me. Os dias são todos iguais. Faço
sopa de feijão encarnado e lombarda, batata e cenoura, nabo. Nunca me esqueço
do sal e ele nunca diz se gosta. Comemos em silêncio.
Depois ele sai
para ir à farmácia e traz o jornal do dia. Eu sento-me a ler o meu livro junto à
janela que dá para o belo jardim do casino. Não fui capaz de ler Gunter Grass,
desisti da sua ratazana.
Estou velha e
custa-me percorrer o corredor do nosso apartamento, que é longo. Chego à
cozinha, lenta, respiro com dificuldade. Acendo a luz e o clique do interruptor
parece querer acordar a alvorada que ainda dorme. Os dias são iguais uns aos
outros. Há muito tempo.
Preparo-lhe as
torradas e ele, quando chega, liga a telefonia que está em cima do balcão.
Ouvimos as notícias em silêncio. Não gosto de o ouvir sorver o leite e ponho de
parte a posta de pescada para o almoço. Verifico que ele toma os comprimidos.
Depois sai para ir comprar laranjas à mercearia, as nossas netas vêm no domingo. Traz também pães de
leite e amêndoas torradas, que vai pôr na caixa oval de plástico cor de
laranja. Eu sento-me a dar um pontinho num pano da loiça; a alça de pendurar
descoseu-se de um lado.
Estou velha e
levo muito tempo a chegar à cozinha para lhe preparar o café da manhã. Às vezes
lembro-me e ligo eu o rádio, não oiço as notícias, não penetram na minha tristeza
opaca, igual todos os dias, mas as vozes dos locutores, que vêm de um mundo
jovem, talvez feliz, e a camisola de lã vermelha que hoje vesti dão-me um
nadinha de ânimo, convenço-me.
Dentro do
envelope de algodão onde há décadas bordei as suas iniciais, J. E., está o
guardanapo dele e eu junto-lhe as sacarinas com que vai adoçar o café com
leite. Ponho a manteiga e a marmelada na mesa.
Depois de comer,
ele sai para ir buscar um garrafão de água e chocolates, as nossas netas vêm no
domingo.
Estou a arrumar a
loiça quando a campainha toca. A campainha nunca toca. Não a esta hora. Não é domingo. Quem é?
Abro a porta, são as minhas netas. Vêm sozinhas? O vosso pai? Elas estão na
penumbra da escada, não lhes vejo os rostos mas fico feliz, fico sempre feliz
quando elas vêm.
- O vosso pai?
Entrámos e em
silêncio conduzimos-te ao cadeirão de cabedal, onde te sentaste.
- O avô ainda não
chegou das compras – disseste. E o vosso pai? – insististe. Não era costume
aparecermos sem ele.
Tínhamos
combinado entre nós que era eu a falar. O nó na minha garganta estava duro e as lágrimas
queriam continuar a correr, há horas que corriam.
- O vosso pai?
Fiz um esforço imenso, os teus olhos outrora azuis tinham ficado pintados de cinzento pela tristeza que carregavas sempre, nunca soube donde vinha.
- Morreu, avó.
- Morreu?!
Passou um minutp ou o tempo de uma vida. Depois, levantaste-te em
silêncio, desapareceste no longo corredor, nenhuma de nós te seguiu. Reapareceste alguns minutos depois.
Tinhas trocado a camisola vermelha pela preta e
perguntaste-nos como foi.
Tão triste...
ResponderEliminarPois foi, Timtim, muito triste. Um beijo.
EliminarBrutal!
ResponderEliminarBrutal, mesmo, Cuca. Obrigada.
Eliminar:'I
ResponderEliminar(queria dizer qualquer coisa...)
E disseste, Palmier, e disseste.
Eliminaré a vida, também
ResponderEliminarbeijo
Isso mesmo, Tétisq, é a vida também.
EliminarOutro beijo.
Nenhuma mãe deveria passar por isso. Nenhuma.
ResponderEliminarPois não, Uva. É, de certeza, a pior das dores.
ResponderEliminarDoloroso, Susana, mas magnificamente escrito.
ResponderEliminarDoloroso, sim. (mas já passou muito tempo, estpero queisso seja claro)
EliminarMuito obrigada, Maria. :-)
Nada bem escrita ficou a minha resposta ao teu comentário, Maria. Corrijo: "espero que isso seja claro".
EliminarBoa semana.
Adorei. Um beijinho Susana .
ResponderEliminarMuito obrigada, Rainha. Um beijinho de volta.
EliminarSe há algum modo mágico ou apenas pragmático de extrair beleza da dor, conseguiste-o aqui, Susaninha querida. Simples e despretensiosamente lindo.
ResponderEliminarMuito obrigada, querida M D. Foi, efectivamente, dos momentos mais difíceis que vivi (mas foi há muito tempo). Acho que momentos destes nos obrigam, haja o que houver, a dar ainda mais valor à vida. Beijinhos (um para a Alice).
EliminarEstou num momento da minha vida em que as tuas palavras me tocaram ainda mais...
ResponderEliminarUm beijo, embrulhado num abraço.
Um abraço, Maria, e um beijo. Espero que tudo fique bem depressa.
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