Ontem, quando o rádio despertador me acordou, fê-lo com uma
valsa de Strauss. Era o Danúbio Azul. Ainda de olhos fechados, remeteram-me estes acordes para a sala de casa dos meus pais, aquela em que eu li os livros da
Patrícia e do Mistério, aprendi a tricotar e fugi de ver o Espaço 1999 que me
metia um medo tremendo, mas só a mim, às minhas irmãs não, e onde tocavam
valsas de Strauss se fosse a minha mãe a pôr os discos.
A sala tinha uma
alcatifa azul escura que servia de fundo às construções de LEGO e ao tabuleiro do Monopólio e também às leituras que tinham de ser feitas no chão, eram leituras de chão: o Tio Patinhas e os
livros da Anita, por exemplo (não se vê ninguém lendo Tio Patinhas no sofá de perna traçada, como é evidente). Ter alcatifa era portanto muito bom, mas quando os microscópios se
tornaram capazes de mostrar aos cientistas os ácaros, nós ai-que-nojo e tirámos
as alcatifas todas. Embora não tenha dado nas notícias, tenho a certeza que a operação se estendeu a todo o país, eu a princípio pensei
que era ideia da minha mãe, mas não, atacou as casas todas que eu conhecia. O
chão de madeira é tão lindo, dizia ela a tentar convencer-nos. Tão lindo o
tanas, que ninguém se senta num chão de madeira a jogar Monopólio. Quando os
microscópios nos conseguirem mostrar os quarks e os bosões e calhar eles terem
bigodes e patas com pêlos, vamos tirar o quê? Tadinhos dos ácaros.
Já parada na passadeira de peões para uma mulher atravessar,
acordo pela segunda vez, desta com o carro nas mãos. Agora foi a Diana Krall. Lança-se na sua voz extraordinária, tão bom que é ouvi-la. De forma que me fez pensar ser um bocado excessivo
juntarem-se numa mesma mulher tanto talento e tanta beleza. Muitos há que nem uma nem outra e isso poderia parecer injusto. Poderia.
Não fosse a gente ter a certeza que mesmo sem talento nem beleza, se pode andar contente.
Certeza que encontrei um dia, deitada de barriga para baixo no chão, pouco antes de ter sido arrancada a alcatifa azul escura.
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