a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

18/02/2015

O melhor possível

Passavam alguns minutos das sete quando o meu cérebro decidiu, na passagem do dorme-bem para o acorda-lá, lembrar-se de uma coisa.

Alguns textos de Ana de Amsterdam são como os quadros da Paula Rego.

A seguir, já perfeitamente desperta pelo efeito de alavanca de que semelhante pensamento foi capaz, pergunto-me: e os que não são Paula Rego?

Levanto-me, vou à cozinha e ponho a fazer o café cujo aroma se vai espalhar pela casa e eu aspirar de olhos fechados quando sair do banho.

Tomo banho, visto-me o melhor possível e a seguir espremo duas laranjas, hoje está sol e deito o sumo num copo.

Ergo-o perto da janela para que um raio de sol atravesse o líquido, beijando-o, degustando-o, tornando-o translúcido, uma simbiose destas mostra que ainda está vivo este sumo e eu com tanta sede matinal. Bebo-o de um trago sem respirar e sinto as papilas gustativas suspirar de prazer e depois ajeitarem-se satisfeitas dentro do sítio delas, localização cujo termo médico só não me foge porque nunca cá veio.

Duas horas depois estou sentada à minha secretária de trabalho e estou ao telefone com um colega de profissão que vejo de quando em vez, trato formal, discutimos a participação num evento que ele organiza, se isto se aquilo, como será melhor, talvez assim, que lhe parece.

Nisto, vejo a Cristina assomar à minha porta e desatar a fazer gestos com uma mão enquanto levanta os calcanhares do chão e torna a baixá-los, numa indicação de urgência iminente, eu não ouvi o alarme de incêndio, muito embora ele tenha o costume de tocar quando não há incêndio nenhum. A mão da Cristina alterna entre apontar para a própria boca e fazer círculos no ar em redor da zona da orelha que pôs dentro da minha sala e torna a repetir a coreografia, calcanhares acima, abaixo, mão, um gira, dois aponta.

- Diga, desculpe, acho muito bem, sim, depois confirmo-lhe, obrigada – isto digo eu ao colega de profissão do trato formal mas ele ainda tem um já-agora na manga, ó Cristina que coisa.

Terei eu feito uma expressão de peixe a morrer na areia, que a Cristina acrescenta mais um quê à dança, agora também mexe os lábios caricaturando palavras sem som, eu ainda com o já-agora em desenvolvimentos, se eu sou membro sénior?, acho que não, isso soa-me a muito velha e muito velha, compreende, tal tal.

De modo que de um lado registei aquilo do membro sénior, que vinha do já-agora, enquanto do outro despachei a Cristina abrindo e fechando a boca exageradamente, a ideia do peixe foi muito boa, já falamos foi o que eu lhe quis dizer, acenei com a mão, ela retirou-se; tive muito gosto em ouvi-lo, com licença, até breve.

Quando desliguei, veio, de súbito, a resposta.

Os textos de Ana de Amsterdam que não são Paula Rego podem muito bem ser Armanda Passos.

Era isto, Cristina?

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