a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

19/07/2015

Para variar do medo

Certamente ainda falta muito inverno e muito abril para o momento em que terei de informar definitivamente sobre o que gostaria de ter plantado junto à minha campa: se uma magnólia branca se rosa. Não decido com facilidade nenhuma qual das tonalidades me faz virar melhor a alma ao contrário e sobrevoar os quintais das casas nas garras firmes das águias reais. Inclino-me, hoje que é um julho na meia idade e restam apenas dois pirilampos tontos a querer acasalar com quê (as fêmeas já eram), hoje que me empenhei em correr atrás do sol a pôr-se, hoje que me senti coroada pela via láctea muito depois disso, inclino-me para a variedade branca, ficamos já a saber. Aliás, foi possivelmente por pouco que me vi feita pessoa, um desvio mínimo (intitular-se-ia lindamente um nano desvio se eu tivesse vindo mais tarde) de um bater de asa de borboleta e temos portanto o tufão que me criou nesta forma, magnólia fica para a próxima, sim?

Um dia normal de trabalho. Tomemos um destes dias, imaginemo-lo cinzento e sem vento. Um ar húmido de chumbo iminente, sem cair nunca. Um céu sem gaivotas (muito menos águias reais). Se calha lembrar-me da magnólia, é capaz de se levantar no ar a gaivota mais fernão capelo que houver ali, cortando depois em fatias finas, demoradamente, o chumbo, que afinal estava macio.

Mas não costuma calhar. E depois, à falta de matéria prima: um texto desenxabido?

Hoje não. Hoje trago duas meninas.

Uma, pelo tamanho do seu talento, alegra-me tanto vê-la e ouvi-la, faz-me invariavelmente sorrir, invariavelmente querer repetir, ver de novo o arquear dos seus lábios, no fim, ao minuto 3:57, a espelhar a comoção devolvida por felicidade tamanha.

A outra, porque me visita frequentemente o pensamento, vinda de uma ferida que se me abriu no coração quando a vi, há meses, por aí na internet. Abriguei-a no meu computador oferecendo-lhe o desejo íntimo, intenso, porém impotente, de que possa um dia mostrar o talento que lhe calhou. E sonho com um seu arquear de lábios desenhado pela mão grande da alegria, para variar do medo. (esta menina continua a fazer-me chorar, precisava de a pôr aqui na minha casa, adoptá-la, mostrá-la)

Campo de refugiados, Síria, Dezembro 2014. Fotógrafo Osman Sagirli. Menina de quatro anos que confundiu a máquina fotográfica com uma arma.

22 comentários:

  1. Um texto soberbo, Susana.
    E uma fotografia que não é fácil interiorizar. O medo estampado na cara da menina, dói só de ver.
    Bom domingo.

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    1. Caríssimo Observador, muito obrigada.
      Não é fácil interiorizar esta fotografia, pois não, faz realmente doer. Apetece ir lá buscá-la, salvá-la...
      Um bom domingo para si também (isto podemos fazer, desejar dias bons uns aos outros).

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  2. Há, nestas meninas, o poder que está guardado no bater das asas de borboletas. Recordo outra foto, também de uma menina, que mudou o rumo de uma guerra (a do Vietname). Esta menina tem, no olhar dela, também essa força rara: depois de a olharmos, sentimos que o bater das asas não pode deixar de criar um tufão -- transformador.

    Um bom fim de semana, cara Susana.

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    1. Vi um filme sobre a guerra do Vietname quando era criança e lembro-me de ter ficado muitas noites a dormir mal. Será que a foto dessa menina mudou a guerra ajudando a cessá-la? Se assim foi, então há borboletas que de facto causam tufões. Dos bons.
      Um bom domingo para si também.
      (parece-me que já tinha saudades suas, caro Xilre)

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    2. Cara Susana, julgo que poderá gostar da história dessa outra foto. O impacto foi tal que seis meses depois estavam a ser assinados os acordos de paz em Paris e iniciou-se a retirada americana. Um tufão -- dos bons.

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    3. Muito obrigada por nos ter mostrado essa história. É uma história onde o tufão foi de facto transformador. Acabou por se tornar mais bela que terrível, apesar de as cicatrizes terem lá ficado, na pele. Benditos fotógrafos.
      Desejo-lhe uma excelente semana, caro Xilre.

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  3. Somos assim, como este post. Juntamos em nós o sorriso e a dor.

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    1. Talvez a grande luta de vida que travamos todos os dias seja procurar que os sorrisos ganhem à dor. Somos assim, pois somos, Luísa.

      Uma excelente semana para ti e um abraço.

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  4. Dá-me vontade de pegar nessa menina ao colo e encher-lhe as bochechas de beijos,sempre que vejo essa foto. Sou uma otimista, mas neste caso, não estou a conseguir acreditar, como o Xilre, que "o poder que está guardado no bater das asas de borboletas", vá originar "um tufão--transformador" daqueles que só arrasa o que não presta. Mas quero muito acreditar e por isso agarrei-me ao exemplo da história da outra foto, aqui deixada pelo Xilre, que não deixa morrer a esperança.
    Beijinhos Susana e continuação de um bom dia.

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    1. (a este comentário creio estar autorizada a responder, estou? :-))
      Dá vontade de lá ir buscá-la e adoptá-la, pois dá. A ela, a outros, a tantos.
      Às vezes - infelizmente poucas vezes - um pequeno nada pode transformar o mundo num lugar melhor e quem senão o nosso querido Xilre para nos mostrar (mais) uma coisa tão bela?
      Isto dos blogues dá mesmo para encontrar pessoas bonitas, como dizia há dias a Cuca.
      Beijinhos, querida Cláudia, muito obrigada, e uma excelente semana para ti também.

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  5. Abracemos a esperança e sejamos, também, borboletas em batimentos de asas!

    Beijos, Susana, e bom fim de Domingo. :)

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    1. E causemos tufões dos bons. Talvez se déssemos mais as mãos uns aos outros. É inacreditável o que as pessoas podem fazer, se se unirem. Eu já vi alguns exemplos e só acreditei porque vi.
      Beijos, Maria, e uma excelente semana para ti. :-)

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  6. Estou maravilhada com o texto. Lindo, fantástico e sei lá mais o quê! Beijos.

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    1. Muito obrigada, Timtim. Eu fico maravilhada com leitores tão generosos, como tu. :-)
      Beijos de volta, com os desejos de uma excelente semana.

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  7. Querida Susana, que texto tão bonito! :)

    Que o olhar desta menina não nos deixe baixar os braços. Às vezes, com pouco, podemos fazer tanto. Pequenos gestos nossos podem fazer tanta diferença na vida de alguém. Todos os dias, a cada nascer do sol, a vida dá-nos uma nova oportunidade de sermos maiores e de fazermos mais em benefício do mundo - que somos todos nós.

    Um beijinho e uma boa semana :)

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    1. É verdade, Miss Smile. Podemos pelo menos fazer o nosso pouco, pelo menos. Mas comentários como o seu, minha querida Miss Smile, não são pouco, são muito.
      Muito obrigada.
      Uma excelente semana para si e um beijinho de volta.

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  8. O mundo é tão terrível que as magnólias brancas, às vezes, são um refúgio obrigatório.

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    1. Será que há magnólias na Síria? E se as houver, conseguirão florir?

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  9. Relativamente à segunda criança, acredito que o falar-se desses assuntos, como o fizeste aqui, constitui um contributo para esse efeito transformador. Não é imediato e são precisas muitas vozes, mas a diferença acontece.
    Quanto à primeira, a canção faz-me sempre lembrar esta coreografia https://www.youtube.com/watch?v=q5P13UnHcKI
    Beijo e boa semana, Susana.

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    1. É verdade, Isabel, são precisas muitas vozes, mas de facto por vezes a diferença acontece. Obrigada por teres lembrado.
      E obrigada pela coreografia! Não conhecia, é muito bonita.
      Outro beijo e boa semana.

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  10. "Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto -
    A escuta enche-nos de sumo como um poço no meio dos pátios.
    A magnólia enxerta-me nos pensamentos, é um profundo
    Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão
    A outra mão. Ela não tem medo
    De aproximar-se quando minha mãe me pega ao colo.
    Ela levanta-se da terra
    Como os tufões e os bandos dos pássaros."
    Daniel Faria/ Poesia

    Um beijo Susana

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    1. Caramba, Teresa. É bom saber que não sou a única a vibrar com as magnólias. Quando eu for velhinha e já não tiver que trabalhar, sento-me em Abril em frente a uma e fico a vê-la florir, só saio quando cair a última pétala.
      Outro beijo, Teresa, e muito obrigada pelo presente. Gostei muito.

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