a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

01/07/2015

Verde tinto

O melhor é ir lá atrás. Onde deixei o cabelo mais escuro, a pele mais lisa, o passo, porém, mais trôpego. Tanto, que não travei a fundo, como tinha de ser, para imobilizar a viatura diante de um sinal que está ali a passar do laranja para o vermelho num instantinho. O carrito branco, feiinho feiinho, que já lá parou é que fez bem, mas está o piso molhado, faltam cinco minutos para começar a aula de ginástica da miúda, e nós aqui. Elas pequenas, as duas, eu grande (não muito).

Passei, faz de conta que é verde tinto, vamos lá meninas, está quase, elas a dormitar, iam sempre a dormitar por causa do trajecto que se fazia em mais de hora e meia todas as manhãs em modo arranca e pára, progresso intermitente no qual a chuva costumava colaborar. Pelo retrovisor tento captar o efeito admirativo que causei na certa ao condutor do carrito branco, feiinho feiinho, viste eu, carrito?

- Olha, achou boa a minha ideia e saiu do semáforo, está a avançar, que giro.

E, na manhã chuvosa, cinzento-cintilante, prateada não obstante (gosto muito de rimar aqui nas prosas, fica muito bem), ouve-se no ar uma sirene umhó umhó, igualzinha às da polícia (muito parecida). Mas não foi preciso mais que um reles nanosegundo para eu captar toda aquela mensagem matinal e encostar o carro com as duas garotas menos estremunhadas, entretanto, mãe, porque vais parar aqui?

- Bom dia senhora condutora, sabe porque a mandámos encostar, não sabe?

- Sei – digo isto de cabeça baixa, lembro-me bem dessa parte da cabeça baixa, mas continuo – o vermelho tinha acabado de cair, senhor agente. E o piso está molhado e… vamos atrasadas para a aula de ginástica…

Mas isso não interessa nada, uma vez que já tinha caído o vermelho, o resto já sabemos, os seus documentos, a morada, senhora condutora, tem duas moradas nos seus documentos, mora em alguma delas, moro sim, vou já corrigir para a semana, estava mesmo a pensar nisso, acredite senhor agente, posso pagar por multibanco, pode, tão simpático, obrigada, vá lá mas para a próxima leva também a da morada, vá tratar disso, vou vou senhor agente, prometo senhor agente.

Fui poupada, por conseguinte, a uma das duas multas a que tinha direito, a das moradas não coincidentes. No entanto a história ainda não acabou.

- Ó mãe, tu disseste uma mentira ao polícia.

- Eu, filha? Que mentira? – é a mais nova, que tem quatro ou cinco anos.

- Disseste que tinha caído o vermelho.

- E tinha. Mas tu se calhar não viste, vais aí atrás, quase a dormir...

- Não, mãe, eu não vi cair nada e depois olhei para a rua enquanto falavas com o polícia, não há lá vermelho nenhum.

16 comentários:

  1. Susana, o que eu me diverti com este texto. Se me conseguisse ver, veria uma pessoa a sorrir enquanto lia cada linha. Cá coisas minhas ;)

    Beijinho ao entardecer.

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    1. Fazer as pessoas sorrir é capaz de ser das melhores coisas da vida. Ou isso ou fazê-las rir. :-) Obrigada por mo dizer, Maria.

      Um beijinho de volta, a horas de dormir.

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  2. Bom, primeiro, não podes negar a tua formação académica... Nem te deves aperceber! Nanosegundos, nanopartículas... Isso não são coisas de pessoas normais;)
    Pois, Susana, tiveste azar com o agente. Só me mandaram parar uma vez, com direito inequívoco a pagar três multas, e fui perdoada de todas. Julgo que o diálogo simpático ajudou;) A atitude de cabeça baixa não veio a teu favor. Acho.
    E espero que te lembres sempre que as crianças não mentem.
    Beijos, Susana.

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    1. Querida Isabel, eu sou bastante normal, mas de fato nano-normal se considerarmos certas aplicações. :-)
      Se tu te livraste de três multas em três e eu de uma em duas, não preciso de dizer em que aplicações sou nano-normal. Preciso? :-)
      Beijos, Isabel persuasora.

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  3. Que azar...
    Se depoimento de filha mais nova pudesse ser tido em conta, já não haveria autuação :)

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    1. Isso é que tinha sido uma boa ideia, Redonda. Como não me lembrei de usar a criança, como?! :-)

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  4. O meu sorriso é que ainda não (des)caiu desde que comecei a ler este texto! Delicioso :)

    Um beijinho, Susaninha

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    1. Querida Miss Smile, esse seu sorriso é um presente para mim. Obrigada.

      Eu é que fiquei com um bem grandão ao ler a sua parte III de hoje. Um conto maravilhoso!

      Outro beijinho.

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  5. Impugna a multa e junta a miúda como testemunha. Ela pode jurar que não havia um único vermelho na rua :))

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    1. Faltou-me esse jogo de cintura, essa lucidez na hora, raios... :-))

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  6. A miúda tem razão, ela devia ter refutado com o polícia :p

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    1. Ela esperou que ele desaparecesse para esclarecer comigo essa coisa de andar a mentir a polícias. :-)

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  7. Costumava dizer ao meu filho, passámos um vermelho directo, e foram várias vezes, os atrasos, as filas, quem não o faz, e nunca fomos apanhados. Mas se fosse, acho que dizia - Ai foi, senhor guarda? Ia com tanta pressa que nem dei conta...

    E vai sempre à frente um nano-carrito, feinho, culpado, absolvido.:)

    Beijinho, Susana.

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    1. Bem, Teresa, para ser franca, deixei de passar vermelhos assim, mesmo à tangente. Páro nos amarelos e os condutores atrás de mim costumam adorar...
      Nano-carrito, lindo. :-))))

      Beijinho de volta, Teresa.

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  8. Há vermelhos assim, atrevidos. Caem quando menos o desejamos. :)

    Beijos, Susana, e um bom fim-de-semana. :)

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    1. E há vermelhos lindos, poderosos como as paixões. :-)
      Beijos, querida Maria.

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