a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/01/2016

A doce vertigem de ser

Quando me ensinaram a dinâmica dos fluidos gostei muito dela apesar de o professor estar constantemente a dizer digamos. Os fluidos são muito úteis como meios de transporte de calor. Ou de força, uma espécie de energia: muitas coisas se podem fazer com os fluidos, especialmente se não estiverem em repouso (dinâmica, daí o nome). Na altura, com certeza eu teria uns vinte anos de idade, não me teria espantado de forma nenhuma se naquelas leis próprias dos fluidos a música tivesse sido invocada, explicada. A música é um fluido. E, se o professor o tivesse feito numa das aulas sobre os fluidos em andamento, digamos, a música é um fluido, eu ter-me-ia endireitado na cadeira, teria esticado o pescoço e aberto mais os olhos com muita atenção. E talvez essa aula tivesse mudado a minha vida, tanto que, mais tarde, ao chegar a casa, teria procurado sem parar a minha solução para esta nova equação - qual música tem a melhor viscosidade para fluir do meu ouvido para o coração ou então para a alma (ainda não saberia). Em vez disso, fui fazer outra coisa qualquer nessa tarde depois da aula que não mudou a minha vida.
Só hoje - já o tempo me dobrou a idade uma vez vírgula tal - descobri isto de a música ser um fluido. Aconteceu de repente ao sentir-lhe a viscosidade perfeita, as notas, como que derretidas, escorreram em uníssono para dentro de mim cavando o silêncio absoluto da harmonia pura (é na alma), dando-me a doce vertigem de ser, mostrando-me a solução. Fechei os olhos e respirei fundo para abrir o caminho em forma de calor: entra, fluido.

Foi Rachmaninoff quem fez isto. Concerto para piano número dois, se faz favor, e agora com licença, não falar comigo.

19 comentários:

  1. Respostas
    1. Não, Maria, fica fica!
      Não era preciso sair, era mesmo só fazer silêncio...
      :-)
      Beijos, Euzinha.

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  2. Susana, como não sou bem mandada, falo contigo.
    Afinal o professor teve um papel importante nesta tua associação da dinâmica dos fluídos e a música. O que parece é que ele não foi muito explícito e obrigou-te a um esforço maior com um intervalo de tempo que parece grande. Só parece porque há sempre um tempo certo para as coisas nos acontecerem.
    Bom fim-de-semana.
    Beijos

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    1. Ó Isabel, mas tu tens sempre uma pequena dissertação acertada na ponta da língua? :-)
      Aquele professor parecia saído de um livro de banda desenhada, em que ele seria um detective que só queria comer hambúrgueres e não conseguia abotoar o casaco de gordo que estava, mas no fim descobria a chave do mistério e fazia um brilharete sem ninguém esperar. :-)
      (também dissertei)
      Beijos, Bailarina.

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  3. Querida Susana,
    A tua escrita é sempre música para os meus ouvidos: dás mesmo "as voltas certas ao texto". Comento neste post mas poderia fazê-lo noutro qualquer: gosto de todos.. e agora apeteceu-me diz-te isto! 😉 Beijinhos.

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    1. Querida Carla, música para os meus ouvidos são as tuas palavras. Muito obrigada por mas ofereceres. Beijinhos de volta.

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  4. Fui calçar umas pantufas de propósito para não fazer barulho. Silenciosamente, deixo-te aqui, em cima do piano, este bilhetinho “Gosto de Rachmaninoff e gosto de ti”. Desculpa os estalidos vindos dos meus joelhos.

    Um beijinho, querida Susana :)

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    1. Miss Smile, nós aqui todos no silêncio e eu estrago tudo com a gargalhada que o teu comentário me arrancou. :-)
      Também eu gosto de ti.
      Outro beijinho, querida Miss Smile.

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  5. eu, como cheguei atrasada, e nem sempre deixo aqui registo, apesar das vindas, hoje, que devia entrar e sair sem dar nas vistas, é que me dá para matraquear nas teclas. Mas, atenção: faço-o antes de iniciar a audição que, espero fluída, sem interrupções, "digamos", deste trecho.
    Bom fim de semana,
    Mia

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    1. Querida Mia, claro que não chegaste atrasada, a fluidez da música está sempre fresca para encantar quem a queira sentir. :-)
      Bom domingo. :-)

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  6. Tantas coisas nos passam ao lado quando temos 20 anos!
    "Digamos"

    :)

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    1. Digamos que, se tudo nos entrasse no coração e na vida logo aos 20 anos, então o resto que nos faltaria viver seria talvez um pouco... vazio.
      Olá mz :-)

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  7. Em silencio te digo que adoro ouvir Rachmaninoff, sem duvida há coisas que só fluem com a idade.

    Beijo e boa semana

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    1. Olá Cristina, bem-vinda :-)
      Aos vinte anos não ouvia Rachmaninoff, de facto. Mas Mozart, Verdi, Beethoven, Ravel e J. Strauss ouvia, ajudavam-me imenso a estudar.
      Outro beijo e um bom resto de semana.

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  8. Que bom. Vim, na dúvida, do post lá em cima, isolado, mas aqui ainda consigo assistir ao concerto. :)

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