De manhã cedo ajudei-te com a impressora e o trabalho para entregares ao professor. Precisamos do tinteiro de cor, ficaram as figuras desmaiadas, ainda assim, não faz mal, disseste, dá para ver bem. Deixei-te, pouco depois, no portão da escola e segui para o trabalho. Levava comigo a memória amarga das tuas lágrimas de ontem, as que foste esconder no duche depois do treino. Levava também a angústia de não saber se serei capaz.
"Mãe, podes almoçar comigo?" dizia a mensagem que chegou a meio da manhã.
Apanhei-te ao portão à hora combinada, desta vez não me fizeste esperar. Almoçámos ao sol que Lisboa nos deitou e eu encontrei no fundo manso dos teus olhos grandes, coabitando com a esperança original intacta, o medo desajustado, este medo novo, um medo que não é o do escuro nem o do lobo mau, esses morriam fáceis nas palavras que me ouvias, eu era então capaz. É um medo feito agora mensagem que não sabes enviar por não a poderes ainda formular. Capto-a, porém, descodificada. Guardo-a no coração embrulhada em amor pronto a usar, mesmo à mão para te servir de amparo, filha, se for capaz.
Continuas a falar mostrando-me, sem saberes, a luta que se trava trôpega dentro do teu cândido existir e o meu embrulho começa a abrir-se. Sai-me agora em silêncio pelos poros num calor que te quer enlaçar a alma para sempre, revestir-te de uma camada de força inquebrável, maior que o sol e o rio e leve como o pôr de um sol de verão quente, um seguro de vida protegida por este meu doer que me teria começado também a jorrar pelos olhos em estado líquido, não fosse um pardal pousar na árvore nua junto de nós.
- Está ali um pardal, mãe.
Ficámos ambas a olhá-lo saltitar entre os galhos enquanto ele foi nosso. Depois, quando voou para fora do teu alcance, voltaste esses olhos grandes de novo para mim e sorriste.
- Já estou melhor.
Eu também, filha. Tu ainda não sabes que serás capaz. Mas eu sei.
Quando se tem a capacidade de ver um pardal é-se sempre capaz de tudo.
ResponderEliminarQue post tão bonito, Susana.
Sabes que eu ia pôr precisamente essa conclusão no post, mas depois achei que não era preciso. :-)
ResponderEliminarMuito obrigada, querida Cuca.
Puxa...tenho esquecido o poder do coração...obrigada Susana...
ResponderEliminarOs pardais incorporam anjinhos de vez em quando, sabias... :)
Esquecido o poder do coração, ana?... não parece...
EliminarSabia, claro. :-)
um poema de Carlos Drummond de Andrade para a mãe Susana, tão bonita por dentro (por fora nunca vi :)
ResponderEliminar«Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.»
Que poema tão belo... muito obrigada, querida flor. Mais bonita não sei se fiquei, mas enriquecida sim...(sabes, acho que a poesia tem muito mais beleza quando nos chega pela mão de alguém)
EliminarLindo texto Susana. Só uma mãe consegue saber por inteiro o que uma filha apenas ainda, mal pressente. São coisas místicas de um mundo arredado, milagres nossos, paralelos à vida que corre, como um elo de pensamento em volta de um pequeno pássaro, como tão bem descreveste. Porque há em nós um outro fluído, dentro de muitos embrulhos, que se chama alma, e as almas, por vezes, enlaçam-se.
ResponderEliminarUm abraço apertado, querida Susana.
Obrigada, Teresa. O meu texto não é mais bonito que o teu comentário.
Eliminar" ...e as almas, por vezes, enlaçam-se." E eu acredito, sabes, que é nestes enlaces que nos nascem os sorrisos.
O abraço apertado, retribuído, Teresa querida.
:)
ResponderEliminarBonito e terno. às vezes basta ver as pequenas coisas para renovar a esperança :)
Olá Vizinha! (também posso chamar-te Vizinha?)
EliminarConseguiste vir aqui ter, mesmo com essa perna engessada, e isso é de muito valor. :-)
Obrigada. :-)
Um abraço com cuidado, para não magoar nada.
O gesso já lá foi :)
EliminarE aqui já venho há um tempinho :)
Obrigada :))
Eu sei... :-) mas dava tanto tempo usar o gesso para o meu comentário... :-)
EliminarAqui no meu belíssimo comentário, onde se lê "tempo" devia ler-se "jeito", se não me tivesse faltado o segundo, que o primeiro, nesse dia, havia (por ser domingo).
EliminarSorry.
Partilhar as angústias suaviza a dor.
ResponderEliminarE os pássaros trazem mensagens de alegria nos seus voos e trinados.
Beijos, Susaninha, e um fim de semana feliz. :)
A alegria, se partilhada, aumenta, a angústia, se partilhada, diminui. Contas bastante certas, quanto a mim. :-)
EliminarBeijos de volta, Maria, bom fim de semana. :-)
:-) Bela. Simplesmente bela a forma de te expressares, Querida Susana!
ResponderEliminar(e essa angustia que nós, mães, temos e essa certeza que precisamos!?! se a angustia é permanente, espero alcançar essa certeza na mesma dimensão!)
Um beijinho de bom fim-de-semana.
Minha querida Carla, e eu acolho no coração as tuas sempre generosas palavras, muito obrigada.
EliminarAcho que não há amor sem angústia, simplesmente, Seja ele qual for.
Beijinho, Carla, bom fim de semana aí para cima. :-)
Acabo de encontrar aqui um pardal, Susana. Aquilo que escreves que eu imagino, sempre, ser com a ajuda de um coração muito, mas mesmo muito grande,(não, a biologia agora não é para aqui chamada) pode substituir o pardal no caso de não andar nenhum por perto. Mentia-te se dissesse que neste momento em que estou a comentar não estou bem, mas acredito que se não estivesse sairia daqui melhor, a sorrir, bem, a sorrir de certeza, posso comprovar.
ResponderEliminarÉ mesmo o que penso, embora esteja a aperaltar as palavras o melhor que sei e posso e a vesti-las com metáforas, mas é por ser para ti que mereces que te apareçam envergando o seu fato domingueiro, mesmo ao sábado. Também podia ter optado por dizer-te, apenas, que este post podia ser um resumo da vida.
Beijinhos e até logo, Susana.
Estou certa de que encontrarás muitos pardais, Cláudia. Por um lado, eles sentem-se bem (também estou certa) junto de pessoas que fazem cozinhados de palavras com metáforas suculentas, mas também porque os teus olhos captam a vida com muita clareza.
EliminarGostei muito do teu comentário, minha querida Cláudia. Muito obrigada.
Bom domingo, beijinhos de volta.
As almas das mães pressentem as mudanças nos filhos. Neles, há sempre um pouco delas que espreita. E nessa interpretação, que elas tão bem sabem fazer, há sempre uma sensibilidade que confirma aquilo que elas já sabem – que as mães continuam a trazer os filhos dentro de si.
ResponderEliminarMuito bonito o teu texto, querida Susana.
Um beijinho :)
Ah, querida Miss Smile, que bom ver-te aqui de novo!
EliminarÉ de facto um enorme privilégio ser mãe. Por trazerem os filhos dentro delas, nunca andam sós. E se quiserem até podem alargar o seu coração e ser mães de mais alguém.
Muito bonito o teu comentário, Miss Smile, obrigada.
Outro beijinho, bom domingo.
Que bonito :) as mães têm o super poder de ver á transparência. Apesar de não ter filhas, apenas rapazes e ser mais difícil fazê-los ver os pardais, tento sempre fazê-los olhar na sua direção. Resto de bom domingo
ResponderEliminarOlá GM, obrigada :-)
EliminarAcho que, tenhamos filhas ou filhos, conseguimos sempre fazê-los ver, se não um pardal, então talvez um avião. :-)
É a partilha da vida que afinal conta, não é?
Uma boa semana.
É difícil ver os filhos crescer sem querer ajudar em tudo. Opinar em tudo. Esclarecer tudo.
ResponderEliminarSabes o que leio? A excelente mãe que és! Que excelente, também é o silêncio, de quando em vez. Mostra sem palavras que se está lá para todas as situações. E eles, os filhos, até podem sabê-lo, mas precisam senti-lo.
Beijinhos super mamã!
Querida Mafy, é isso mesmo. Por vezes ficar quieta a vê-los sofrer é a coisa mais dura. Mas necessária. É também amar, deixar crescer. E o crescimento dói.
EliminarMas estou longe de ser uma mãe excelente, Mafy.
Beijinhos para ti e um abraço apertado.