a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

12/01/2016

Ik ga weg

No sábado ia para a festa com esperança de a encontrar. Conheci-a precisamente há um ano, no aniversário desta amiga comum. Então, ao ver-me, perguntara-me se eu era de Espanha, és de Espanha?. Larysa é ucraniana mas vive na Holanda há anos. Sou de Portugal, dissera eu. Sentámo-nos por acaso lado a lado e desatámos a conversar, talvez por sermos as únicas não holandesas da festa. A dado momento, ao sacar do seu smartphone para me mostrar fotografias do neto e dos filhos e também para registar o meu facebook - por causa da empatia que se gerou entre nós - ouviu-me dizer que não tenho facebook. Larysa abrira muito os olhos fitando-me em busca de veracidade na minha estranha declaração, que confirmou no meu olhar, ou então noutro ponto qualquer de mim, inclinou a cabeça um pouco, pareceu condoída e, aproximando-se mais, baixou a voz: porquê?... não tens internet?

Um ano volvido levo pois vontade de a reencontrar mas também levo tudo na mesma, uma vida ainda sem facebook (embora comece a achar que se trata de um egoísmo comodista, mas disso não falaremos agora). Ao aproximar-me da casa vejo, encostada à fachada, uma bicicleta que suponho pertencer-lhe; lembro-me que no ano passado havia neve e a bicicleta dela era a única; este ano, sem neve, mais razão haverá para ser a dela, animei-me.

Ao entrar na sala onde estão os convidados, procuro o cabelo loiro platinado que trazia na memória, mas não o encontro. E só quando dou a volta a apertar as mãos aos desconhecidos e a dar três beijos aos conhecidos, ou aos amigos, dou de caras com uma Larysa de cabelo acobreado, mais comprido, a rir-se para mim com ar de quem pensa "ah, não me conhecias, mas eu vi-te!". Quando terminei a ronda dos cumprimentos, eram mais de vinte pessoas, Larysa faz-me sinal para me sentar entre ela e Anne, havia ali um lugar livre.

- Tu és de.... espera, não digas... ah! já me lembro, és de Espanha!

- Não, Larysa, sou de Portugal - se ela no próximo ano insistir com Espanha, sou capaz de deixar ficar.

- E já tens facebook? - disto não se esqueceu ela e, perante a minha resposta, atirou a cabeça para trás e deu uma valente gargalhada, visivelmente divertida - não faz mal, eu dou-te o meu cartão. Pegou na mala e tirou de dentro um cartão azul claro com a sua fotografia impressa, agora é um terceiro cabelo, nem o louro platinado nem este acobreado - eu mudo muito de cabelo, esclareceu-me, ao ver-me comparar a fotografia com a própria.

- Olha, no verso do cartão está aí tudo o que eu faço, vês? finanças, consultoria às empresas...

Mas isto é russo ou ucraniano, Larysa?, é ucraniano, claro, dá cá, vou-te ler. Leu, finanskaia, companiaska e coisas assim à russa, embora seja ucraniano. Perguntei-lhe se há muitas diferenças entre as duas línguas, não há, há poucas. Mais de metade das palavras, continua Larysa sempre a rir, são as mesmas. E as pessoas de um lado percebem as do outro? Percebem, a maioria dos russos percebe os ucranianos e o inverso também, só algumas pessoas não percebem (e aqui riu-se Larysa ainda mais). Com pena minha, não continuámos a conversa por muito tempo, de repente Larysa levantou-se, ik ga weg, tinha de sair. Despedimo-nos, disse-me para ir tomar café com ela antes de passar outro ano, quando cá voltares.

Com a saída de Larysa, virei-me para o outro lado, onde se sentava Anne. Amavelmente, Anne já estava preparada para conversar comigo, para não me deixar sem interlocutor, é assim que na Holanda se faz. Anne é alta, magra, tem os olhos grandes e azuis, usa óculos de massa preta e o cabelo curto, já grisalho. Anne é uma pessoa doce, tem uma voz agradável (sou estranhamente esquisita com vozes) e consigo perceber razoavelmente bem o que ela diz. Tem mãos compridas e fala muito com elas. Quando se ri, põe uma das mãos à frente da boca e baixa a cabeça, mas ri-se muito menos do que Larysa. Como estão as tuas filhas?, perguntou-me. Bem, uma já na universidade e a outra encantada com a escola nova. E o teu trabalho, como vai?, foi a minha vez de perguntar.

Dentro das minhas possibilidades e vencendo o ruído ambiente, a conversa continuou cordial, e pode dizer-se mesmo fluida, durante bastante tempo. Mais tempo do que com Larysa. Mas não foi por isso que me senti observada; as pessoas olhavam-nos, notei, olhavam Anne e olhavam-me a mim, talvez constatassem as diferenças entre mim e ela, a ex-mulher do meu marido.