a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

03/01/2016

Jane

No total não nos vimos mais que quatro, cinco vezes. Ou nos cruzámos na rua sem nome que atravessa a aldeia, ou em duas ocasiões num café que lhes oferecemos no final do ano, calhou assim nos dois últimos anos, não porque sejamos amigos especiais, mas porque as nossas casas eram as duas únicas casas habitadas na aldeia. Estão ambos avançados nos cinquenta, adivinho. Ela faz pudins no refeitório de uma escola da cidade inglesa onde moram, ele faz a manutenção dos helicópteros de dois grandes canais de televisão. No último dia de dois mil e catorze contaram que tinham planos para poderem vir mais vezes à aldeia serrana, para isso ele andava a fazer o curso de manutenção de aviões, aumentando as suas possibilidades de ser colocado em terras lusas se não permanentemente, pelo menos algo frequentemente.

- You know, it'll be likely to come more often to Portugal, isn't it? - ao dizer "isn't it?" olha para ela, que não responde propriamente, faz um trejeito de olhos (azuis).

É alta, tem mãos grandes e o cabelo muito curto, não se pode dizer que seja bonita e vê-se bem que é inglesa.

- I like my work, yes I do, but I enjoy very much being here, don't I? - é ela agora quem olha para ele a pedir a confirmação, que se reduz a um idêntico trejeito de olhos (também azuis).

Ele é grande e musculado, tem o rosto vermelho e as mãos secas, cabelo quase rapado, um sotaque muito inglês.

- We love it around here 'cause it's very quiet, don't we? - foi a vez dele e de novo olha para ela no "don't we?"

- Our daughter loves it, too, she used to come along sometimes, didn't she? - e assim por diante.

Eu comecei a morder-me para não rir, eles falavam literalmente assim, alternadamente e sempre a terminar na busca de confirmação junto do outro, talvez hábitos de casamentos com várias décadas ou então é costume lá na grande bretanha, sei lá eu. O que sei é que o ano passado foi-me difícil resistir até ao fim sem me rir, eles divertiram-me muito mais do que os fiz saber. Claro que simpatizei com eles, talvez principalmente com ela, que do seu cabelo curto e das suas mãos grandes parecia emanar um aroma à baunilha dos pudins ingleses de colégios internos como os dos livros da Enid Blyton nos quais recolhi tantos entreténs para os meus ávidos sentidos. E para além disso gosto de pessoas que vivem boa parte do seu tempo na cozinha, são pessoas doces.

Mas este ano o carro alugado só apareceu à porta do seu cottage no dia trinta e um, já tarde. Durante todo o ano de dois mil e quinze não vimos o Tony e a Jane, o cottage sempre com as suas janelas de portadas verdes fechadas.

Foi hoje, quando andava eu a fotografar folhinhas, que nos cruzámos na tal rua sem nome. Tony vem a comer um chocolate que parecia minúsculo naquelas mãos de arranjar helicópteros (e talvez agora também aviões), enormes. Ela caminhava mais atrás, também de óculos escuros, pareceu-me mais baixa um pouco, mas eu ia a pensar noutra coisa e enquanto me tentava lembrar do nome dela - que por felicidade me escapou - para poder dizer Hi Jane, you look different, I almost didn't recognize you, vi de repente que esta Jane é outra. Mais baixa, efetivamente, creio que mais bonita e mais nova seguramente. E então, a tempo, calei a gaffe, que substituí por um facílimo e muito conveniente Happy New Year!

Tony terminou o chocolate enquanto comentava que o tempo não tem estado grande coisa, pois não, ela sorria, esta nova Jane, e eu - sentindo um certo desconforto neles (ou foi impressão minha?) - não perguntei pelos helicópteros nem pelos aviões, despedi-me fingindo a pressa que não tinha e continuei a fotografar as folhinhas. Com pena. Tive saudades da outra Jane, acho que nunca mais a vejo.

17 comentários:

  1. Esta história está tão bem contada que até eu sinto não gostar nada desta nova Jane.

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  2. Pegando no comentário anterior a mim calha-me dizer que a história tal como ela é contada, deixou-me a desgostar e muito do Tony.

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    1. Vamos ver, Ava, ainda não sabemos mais nada... aguardamos desenvolvimentos. Talvez lá para a primavera torne a encontrá-los...

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  3. Talvez a outra Jane esteja mais feliz sem precisar da confirmação de cada frase.

    Beijos, Susaninha. :)

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    1. Talvez seja isso, querida Maria Eu. Sabê-lo-emos.
      Beijos, Maria :-)

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  4. perhaps Jane meets Tarzan! Me likes Jane! Me likes pudding! :)

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    1. That's my hope, indeed!
      And that Tarzan takes good care of her so she can keep making delicious puddings :-)

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  5. e aposto que a Jane I ainda deve estar a pensar que a culpa é dela...

    enfim, às vezes mais vale "fotografar folhinhas" :)

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    1. Fotografar folhinhas é bastante relaxante, por acaso é. O que estará a sentir a Jane I também não sei, mas fiquei desde ontem a pensar nela e neles. A vida por vezes dá voltas que até podem parecer uma coisa, mas são outra. Saberei, farei por saber. (e depois venho cá contar)
      Um beijo, querida flor.

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  6. Não é correcto ajuizar a Jane-a Nova e o Tony, sem saber o que realmente aconteceu com a Jane -a Velha. Há escolhas que a vida faz por nós, nomeada aquela do abandono total, a qual nós somos completamente impotentes de lhe negar permissão. É o caminho de todos os homens e mulheres...
    E depois há pessoas para quem a solidão é uma morte em vida.
    Pode ser o caso do Tony. Seguiu em frente, sabe Deus se destroçado ou gaiteiro...
    Beijinho Susaninha, bom 2016

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    1. (é por estas - palavras sábias - e por outras, que eu prefiro as mulheres mais velhas :)

      tem toda a razão, MDRoque.

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    2. Minha querida MD, é precisamente esse o ponto. Claro que o que parece à primeira vista é uma coisa, mas a realidade pode até ser bem oposta. Eu também não gosto de julgar ninguém sem lhe calçar os sapatos primeiro... e isso é muito difícil de conseguir.
      Que saudades de si, MD!
      Um grande e maravilhoso 2016 para si e para os seus. Um beijinho.

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  7. Podemos imaginar muitas histórias a propósito das Jane. E por muitas histórias que imaginemos isso não significa que estejamos a julgar o que quer que seja. É bom contar histórias e tu, Susana, contaste esta história muito bem. :)

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    1. É bom contar histórias, pois é. Principalmente se forem histórias reais.
      Obrigada, luísa. :-)

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  8. Querida Susana, pensando na média, e fazendo um pequeno cálculo de probabilidades, é mais que possível que a velha Jane tenha sido trocada, qual velho helicóptero, pela nova Jane, qual avião. Acredito que, passado o luto, tudo se renovará, também para a velha Jane, e, mais uma vez, pensando na média e nas probabilidades, a velha Jane ficará sozinha, a cheirar a baunilha e encantada com um neto, e o velho Tony, cairá, pelo cálculo de probabilidades, na velha asneira de repetir tudo outra vez, tendo mais um filho, e casando com a jovem secretária do hangar.
    Como eu gosto de olhar para o chão...às vezes. :)
    Um beijo

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    1. Eu também acho que foi como dizes, especialmente porque senti um desconforto neles. Mas posso estar enganada, claro. A velha Jane há de encontrar o seu caminho, é sempre assim que acontece.
      Acima de tudo, não julgo ninguém, logo eu. :-)
      Outro beijo, querida Teresa.

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