a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/12/2025

Um Natal muito contente e feliz, alegre e ternurento

Há imenso tempo que certos estares de alma parecem completamente obsoletos. O que tem cada vez mais ocupado os lugares cimeiros da admiração pública é a raiva, o desprezo, a invejazinha 'saudável' na melhor das hipóteses.
Ah! E o querido ódio, claro, esse eficaz desfeador de interiores. 
Acabo de chegar do artigo de opinião de Luís Pedro Nunes, publicado no Expresso. Diz que estamos viciados em raiva.
Eu digo que é coisa mesmo agradável ler a lucidez alheia. Dá-nos a impressão de a termos nós também. De sermos bons ou mesmo uns amores, de nos apetecer logo desejar um Santo Natal a torto e a direito do fundo do coração. De garantirmos ao espelho que nós coiso. Ao menos isso. 
Especialmente nesta quadra em que nos muito encontramos, em que é quase admissível tirar-se do fundo da gaveta uma dose de alegria, pá, de tolerância, de amabilidade e - ai como se chama a outra - ah, sim, de fraternidade! Sai uma de fraternidade para a mesa seis! Ó filhos, que possamos mas é navegar mais a fundo, que não nos dediquemos tanto à desarte de chapinhar à superfície. 
Pensemos, pois. Com a cabeça. Com a própria cabeça. 

04/12/2025

Como se diz agora, pedimos compreensão pelos incómodos causados

Sento-me viajando de costas. Vou carregada como nos tempos do liceu: livros, cadernos, pastas de plástico de cores fortes a somar ao computador, claro. E aos transportes públicos. 
O pavimento está molhado, choveu de noite. Há mais carros nas ruas da cidade, o trânsito inferniza-se, emite buzinadelas. Não sei se é o Natal com os efeitos perniciosos de nos instar às pressas na direção das promoções, agora que finalmente nos livrámos da sexta-feira preta, uma estranha e longuíssima sexta-feira. 
Ou se é de mim que estou mais olhuda. Acabada de sair de dois livros que li sofregamente, um a seguir ao outro, e até a roubar tempo ao estudo, estou em penas. Queria ficar numa história onde se cabe tão bem. 
Com a vista desfocada numa poça de água sobre o asfalto lá fora, ocorre-me outra vez que a vida é mas é brutal. Existir, ser aqui, mesmo chocalhada pelos arrancos do autocarro em hora de ponta metido entre um condutor nervoso e outro chateado. 
Para baixar um pouco a intensidade disto, evitar sorrir parvamente do meu assento para o ar húmido que embacia os vidros, enuncio mentalmente três coisas que não me ajeito a fazer, nem passado tanto tempo. 

Compor flores numa jarra. 

Escolher os cortinados certos, muito lindos. 

Fazer belíssimas resenhas de livros.

22/11/2025

Se a aspirina pode

Era uma vez uma farmacêutica muito grande que patenteou a aspirina para quê? Para aliviar uma dorzinha ou outra (consegue várias) e ainda, se a febre nos chegar, fazer baixá-la. 
Os anos passaram e uns médicos expeditos descobriram que a aspirina ainda dá para outra função: tornar mais líquido um sangue com queda para engrossar e formar os indesejáveis grumos sanguíneos.
Ora esses médicos tão reconhecidos foram que patentearam este novo uso da aspirina! Sim, patentear usos também se pode. 
O caso muito polémico do remédio para a diabetes que também combate a doença da obesidade só é feioso porque o Estado Português não tinha ainda concordado em arcar com parte das custas dele para livrar as pessoas desta doença, mas apenas para aliviá-las daquela. Consequência: o fármaco não chega para as encomendas e entretanto encheu os bolsos errados.
Mas pensando bem, o Estado Português vai poder poupar uns cobres por ter menos obesidade e maleitas associadas na população.
A polémica resolvia-se com um senhor aumento na oferta do químico ao mercado, por um lado, e uma revisão urgente da lista dos medicamentos comparticipados, por outro. 
Ou a obrigação das gentes é sempre sofrer e sofrer, meus senhores?

16/11/2025

Ó pá, sim.

Então o que temos hoje?
Temos o Astérix na Lusitânia sob investigação. 
Adquiri o meu exemplar no coração de Coimbra e li-o quase todo dentro da loja ainda sem o pagar. Havia lá uns sofás jeitosos onde leitores e acompanhantes podem descansar os ossos e dar alimento à cabeça.

E foi ali mesmo que decidi iniciar uma investigação baseada numa curiosidadezinha: como raio será que nas outras línguas traduzem o nosso muito querido e abundante "Ó pá"?

Os resultados da investigação já estão disponíveis para dois casos:
_#ocasoespanhol: "Ó pá" não traduzido, simplesmente ignorado,
_#ocasoholandês: idem, idem.

Estamos lindos. 
(mas em princípio continua) 

12/11/2025

Manuel Cargaleiro, chama-se ele

A velha mala azul-sujo apareceu no tapete de entrega do aeroporto de destino carregadinha do Cláudia.
Ou da Cláudia, se esta foi categorizada em tempestade e não na turma dos furacões ou tufões. 
A Cláudia choveu para ali toda na pobre mala à porta do avião e à beira da partida. Dentro dela já não ia o computador, que a tempo retirei. O felizardo viajou no aconchego do meu lugar à janela. 
O problema foi o livro. Como o deixei ficar dentro da velha mala azul-sujo, apanhou a senhora molha da Cláudia, que trespassou em grande para os meus pertences. Coitadinho, vinha ensopado. Um livro que custou caro, está devidamente marcado e sublinhado, anda a estudar comigo há vinte meses e prepara-se para outro tanto e não mais, pois aqui a viajante incauta pretende passar nos exames todos à primeira. 
É o que dá o querido aeroporto de Lisboa abençoar as malinhas que à porta do avião são desviadas para a barriga do mesmo e ficam ao relento sabe-se lá quanto tempo à espera dos handlings, pá. 
Poças.

(Manuel Cargaleiro é o nome do avião, um A320 neo, para o caso de interessar)