a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

15/01/2025

E sem telefonezinho esperto, como vai a vida?

Então conta lá de que te esqueceste hoje, hein? Do telefonezinho esperto? Sim?! Muito bem!

Isto é para aprenderes a não reclamar tanto de viveres agarrada aos ecrãs, às apes, às palavras-passe, ao mbway (como se traduz isto? caminho de multibanco?) e etc. Agora sim, é que vai ser. Dois dias no escritório sem telefonezinho, sem o coisito de abrir a porta automaticamente que se acomoda há anos no côncavo da capinha, sem atender clientes aborrecidos nem a mamã, as miúdas, sem descontos nem promoções, sem alertas amarelos. Sem o chato do whatsapp. Mas isso é excelente, o chato do whastap, esta palavra inscrevível!

A sorte é a velhota que vou sendo ainda aderir imenso aos cartões de pagamento que não precisam de carregar bateria nem de outras esquisitices, estão sempre lá para ti. Ou para mim.

Mas que me esqueci do telefonezinho esperto em casa já se percebeu, não é? Ficou no escurinho gelado da serra, perto dos veados e dos gatos, dos javalis e dos limoeiros carregadinhos que eu sei lá. Distraí-me a emalar uma impressora novinha para trazer. Rápida, a jato de laser. É que ela vai proporcionar-me imprimir o exame que se aproxima, dez minutos antes de começar a contar o tempo. 

Um exame que a pandemia determinou fazer-se em casa ou em qualquer lugar, ou melhor, qualquer não: é um lugar onde se está sem ouvir música, sem sair da frente da câmara de controlo, sem falar, sem animais de estimação e muito menos pessoas no mesmo quarto, sem ir à casa de banho a não ser em condições mais extremas, sem barulho nem fotografias com caras atrás da pessoa, a inteligência artificial que vai tomar conta não sabe ainda distinguir fotografias de gente a três dmensões, coitadinha. E, lá está, sem telefone esperto, nem burro, nem relógio esperto (mas relógio burro pode). Sem ceninhas dentro dos ouvidos, que têm de estar descobetos para a tal inteligência "ver" bem que tal estamos. Comidinha podemos, o que é excelente contra os roncos da fome que o meu estômago é capaz de fazer se ainda se lembrar dos exames da faculdade, e que podiam alertar a inteligência (artificial) para a presença de javalis no quarto de exame (javalis ou leões, mas os javalis cabem melhor, sempre são mais maneirinhos). E bebidas também pode ser, se bem que não muitas por causa das aflições.

Portanto, vou isenta de telefone neste comboio da noite em direção a Lisboa, porém acompanhada de uma impressora branquinha, rápida já disse, com laser a jato também, o laser acomodado no interior de uma ampola delicada enfiada ali nos sistemazinhos, pronto para receber ordens de se lançar às folhas de exame dentro de semanas; então a impressora já instalada e completamente fora da caixa. Ai senhores.

21/12/2024

Vinte e dois livros à data

Escrevo na agenda, nas folhas para notas, os títulos e os autores dos livros que leio. Para chegar ao final do ano e saber se ele foi bom. Os de poesia não contam, que esses nunca se acaba de ler, naturalmente.

Vinte e dois é a conta à data. Com um melhor dormir que me chegou da idade, muito Bach, a casa razoavelmente limpa, as contas em ordem, o número de contribuinte, os vizinhos mais quietinhos, e apesar do whatsapp, da via verde.

Também muitos litros de café matinal, lá isso. Na rua ainda noite, metade de mim debaixo dos cobertores, os gatos alimentados lambendo as patas.

Depois o trabalho, claro. O autocarro, aquelas pessoas na paragem. O homem negro, a mulher faladora. E, no longo curso, o comboio a levar-me dali toda com a cabeça já noutro lugar. No livro. 

De sobra, o acordar acima das nuvens, os javalis à noite, os veados na brama quase ao meu lado, ou mesmo saborear o melhor entrecosto do mundo. Pelo meio fazer amigos, fazer sopa, salada, caminhadas, tricot.

Um ano com vinte e dois livros lidos é um ano mesmo muito bom.

20/12/2024

O que dizem as tuas botas?

As botas a separar-me os calcanhares do chão em cerca de seis centímetros. (Assim a olho.) 
A prometer um cansaço no fim da semana, uma dorzinha qualquer. 
Não muito grande, pequena. (Até fácil de combater.) 
Por exemplo, à noitinha, já no comboio doido, resfolegando-se nos metais, nas peças móveis, em todo o seu material circulante, então desaparecem.
As botas. 
Encostarei a cabeça no ponto mais distante delas, talvez de olhos fechados.
E lembrar-me-ei dos jacarandás à espera de junho, das paragens de autocarro com teto alusivo à primavera, e eu pesada com malas no chão.
Coisas destas.
Então sorrirei toda cá no escuro de mim, porque sei perfeitamente que chegou a minha vez. 

(está um dezembro avançado lá fora, cheio de hoteis e luzinhas de natal, e um calor desgraçado aqui) 

04/12/2024

A carreira das oito

Entre também eu agarrada ao telemóvel como quase todos aqui em redor e estar de mãos livres a olhar para as pedras da calçada, prefiro isto de vos escrever.
O autocarro está atrasado conforme é seu habitual procedimento, mantendo os passageiros à espera, espalhados pelo murete de cimento rosa, um rosa por acaso até alegre. 
Os pilares do viaduto que nos encima e protege da chuva se ela cair têm, estimo, um metro de diâmetro. A sua larga curvatura dá portanto espaço à vontadinha para os cartazes a anunciar quartos a estudantes. Alguns com casa de banho e tudo. Outros espaçosos. Ou no seio de lares de famílias respeitosas. Quando não trago o carrego todo dos livros, ponho-me a ler os anúncios para não me esquecer que, no meio daqueles que visam os cifrões e mais nada também se encontra generosidade ou vontade de acolher. Não sendo especialista em assuntos aborrecidos como mercados, deduzo porém estar completamente fora deste. Apesar de ser uma intensa estudante para a minha idade. Mas - um momento, já volto.

Continuando, estou pois fora deste mercado, mas não sou a única. Aqui no murete ao meu lado está o casal de negros velhotes que vai sempre nesta carreira. Demoram imenso tempo a subir para o autocarro e depois a descer, em Lisboa. Ele já me reconhece e fala comigo. Comenta o atraso e o facto de irmos sempre no mesmo dia à mesma hora, acha graça e ri-se de me ver. Ela parece alheada, fica apenas agarrada ao marido com os olhos no vazio. Acho que é quase cega, porque uma vez em que ele se afastou (mas não para ler os cartazes dos pilares do viaduto) ela ficou assustada de esperar sozinha e levantou-se para o procurar. Quando achou que o tinha encontrado uns metros mais abaixo, neste murete, e chegou a cara muito perto da dele para confirmar, percebeu que se tratava de outra pessoa (eu) e não do seu marido. Mas sosseguemos porque ele logo logo, vendo duas mulheres - a sua e eu - de ar assustado e caras tão próximas uma da outra que quase tocavam os narizes, uma delas de olhos vazios muito abertos, a outra de olhos cansados e surpreendidos, respetivamente, acudiu a primeira, tranquilizando-a e desculpou-se à segunda. Ora essa, que é lá isso, pensou esta, balbuciando qualquer coisa que já não me lembro o que foi.
Quando, muito em breve, trocar esta viagem por um meio mais confortavelzinho de a fazer, vou sentir falta deles. Mas só na primeira vez e na segunda, depois, é quase certo que os esqueço.