Mas a verdade é que, se eu não andasse, nos dias em que venho à capital, sem carro próprio, não estaria agora neste pequeno e tranquilo autocarro, em modo de um para-arranca envolto no nevoeiro que se levantou do rio, a fazer uma das coisas de que mais gosto e para a qual parece nunca sobrar tempo. Escrever parvoíces.
a voz à solta
19/11/2024
E tu, também preferes o teu próprio carro?
Diz a Muzi, minha filha mais velha, que mãe, essa tua relação romântica com os transportes públicos... e portanto, sempre que os meus horários não distam muito dos dela, dá meia volta à cidade para me ir levar ao trabalho. Mas não é tudo. No final do dia, se eu ainda estou a vegetar na paragem quando me liga ao sair da última consulta, desvia-se da sua rota para me ir apanhar, indiferente aos meus protestos. Nem de uber ela me deixa deslocar quando essa hipótese aparece no horizonte dos meus planos.
09/11/2024
Mas depois do adeus
Tomei uma decisão crível (e não uma incrível).
Depois fiz um monte de livros lidos que não recomendarei a ninguém. As suas narrativas não encontraram um caminho de valor dentro da minha cabeça. Perderam-se para aqui. Umas parece que vinham baças, outras deslaçaram lá para meio. A sua matéria chegou-me como um holograma desfocado no centro. Pode ser dos meus olhos, naturalmente. Um desses livros traz um desagradável extra de origem: erros. Coitadinho, foi feito à pressa, faltou-lhe um bocado de amor (e não um bocadinho). Há um que conta uma história boa, mesmo muito boa, mas nasceu de mão errada, incapaz de esculpir palavras com umas dimensões assim mais profundas, menos espalmadas, balofas. O teor dos restantes nem deixou vestígios, evaporou-se já.
É como se os livros do monte tivessem vindo por engano. Queriam tomar um caminho e eu desviei-os. Nenhum me foi oferecido, está bem? Todos estes livros vieram por minha espontânea vontade (mas isto não é extraordinário).
Tomei então a crível decisão. Vou metê-los no saco da conferência da semana passada, um saco preto de um algodão macio, bom para livros, e vou oferecê-los à pequena biblioteca de província onde agora mais vivo. Talvez ali algum par de mãos mais certo lhes pegue, ou ângulos diferentes lhes sejam vistos por outros olhos.
Os meus são esquisitos. Um deles chora muito nas grandes superfícies e em esplanadas batidas a vento. O outro fica embaciado a partir desta hora. Incrível (agora sim).
Adeus a todos.
10/10/2024
Diferenças
A brasileira que, na fila para o autocarro de longa distância, explicava ao filho onde, na configuração do veículo, se situavam as suas poltronas, tinha, no primeiro lugar da sua lista de conversas no WhatsApp, um contacto (ou melhor, contato) chamado Grupo Feliz.
Eu não tenho um grupo de WhatsApp com tal designação. E o meu bilhete para a viagem não indica uma poltrona, mas sim um lugar.
Deve ser por isso.
04/10/2024
Felicidades velhinhas, muito grandes
Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, corria o risco de me esquecer da palavra calorífero.
Encontrei-a num poema com Vergílio Ferreira como personagem secundária intitulado Geometria Descritiva. A única disciplina em toda a minha vida que me deu nota vinte.
Não fosse a avisada ideia de começar o dia a ler Adília Lopes para acompanhar o café, e não teria misturado duas pinturas antigas dentro da cabeça. A escola secundária onde as minhas mãos e a minha cara andavam cheias de riscos das canetas que usava com fervor na disciplina do vinte e a voz da minha avó, ao aproximar-se a hora de me ir embora: "Vou desligar o calorífero, para não te constipares com a mudança de temperatura, lá fora está frio."
28/09/2024
Os pêssegos, de Raul Brandão (a quem possa interessar)
Era sexta-feira e havia pouca gente no escritório, menos ainda do que é habitual no último dia útil da semana. Por causa disso, e também porque saí mais tarde para almoçar, fui comer sozinha.
Sozinha não: tinha um livro na mala, um livrinho, deve até ser o mais pequeno livro do mundo.
Pedi a perna de frango assada, legumes e desta vez batata no forno. O frango estava seco, em acordo com a minha preferência, e, enquanto lhe ia desfiando as fibras de carne, que metia à boca em alternâncias ávidas com a couve, a cenoura e a batata, li metade do livro: o primeiro conto. Não comecei a ler o outro, porque a perna de frango estava já toda desfeita, a batata muito acabada, a couve e a cenoura desaparecidas. Fui então arrumar o tabuleiro e saí para a rua. O vento apanhou-me de camisa, o casaco havia ficado nas costas da cadeira, no escritório. É o outono a chegar. Algumas folhas caducas esvoaçavam já secas, estaladiças. Passei pelos homens de calças sujas, que almoçavam na esplanada. As suas camisolas informavam, a quem pudesse interessar, que pertenciam à equipa de montagem do evento. "É a nova exposição", dissera-me a rapariga da caixa quando perguntei que evento era aquele no ato do pré-pagamento da perna de frango.
Depois, como ainda tinha muito tempo de pausa para almoço em crédito, não regressei logo ao escritório. Subi a rua e entrei no café sujo com um específico intuito. Comprar um chocolate. Comecei a comê-lo enquanto descia a rua. De repente, sem aviso prévio, sem que alguma coisa ali se perturbasse, sem um pássaro, sem um sorriso de alguém, uma palavra, um aroma a padaria, nada, sem mesmo nada, de repente, enquanto comia o meu chocolate, senti-me completamente em paz.
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