a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/01/2020

Miopia

- "De vez em quando, publico uma frase motivacional, que é o que as pessoas gostam. Eu não gosto de frases motivacionais, atenção" - trejeito de desprezo pelas frases motivacionais - "mas essas é que dão likes! Se publico um dos meus textos profundos que ninguém percebe" - interrupção para aguardar que estas suas palavras produzam o magnífico efeito esperado na audiência, totalmente impreparada para o fenómeno genial que tem à frente - "aí, nos meus textos profundos, tenho menos likes. As pessoas querem é frases motivacionais."

"As pessoas". Não terá ela reparado que na audiência quem se senta não são camelos, não são moscas nem ovelhas, não são elefantes ou macacos amestrados, não são sequer os muito procurados robots, não. Na audiência, sentam-se precisamente, olha que coincidência, pessoas.

Ao meu lado, Júlia pesquisa no seu dispositivo inteligente material sobre a autora daquelas palavras, nitidamente muito presente nas redes sociais. Acho que ela está tão enojada quanto eu, mas eu ainda devo ter o queixo caído. Encontra fotografias do exemplar. Solta uma leve exclamação. Mostra-mas: são fotografias que estão para a oradora aqui presente, como está, digamos, a bela para o monstro (embora o monstro até fosse fofinho).

Eu se tivesse uma vontade irresistível de enganar pessoas desta maneira, acho que pelo menos tentava disfarçar.

29/01/2020

Circular de segunda na segunda

Se não fosse capaz de adivinhar, por causa de serem muitos anos para lá e para cá, onde se estendiam antigamente os traços contínuos da segunda circular, eu ignorava aquilo. Muitos anos, embora repetir, a apurar a perícia no adivinhar dos referidos tracinhos, saudosos tracinhos. Eu sou do tempo deles (eram de um branco bonito!). Mas portanto, isto falo por mim, lá vou conseguindo navegar no piso (deixemos a ondulação natural e os buracos ornamentais para outro episódio) mais ou menos em conformidade. Só que, como toda a gente sabe, nem tudo são rosas e não é que hoje de manhã, quando tive oportunidade de circular pela segunda, eu e mais uma data de gente, não é que vou e me encontro ali mesmo a – vejo num relance um indício - passar um dos queridos tracinhos? Encontro. Pois fiquei a pensar nisto. E agora estou capaz - não vá um destes dias, enquanto empenhada ao volante à procura do tracinho maroto para não o pisar, não levantar a cabeça a tempo de evitar partilhar problemas com o carro da frente - estou capaz, dizia, de lançar um tipo crowdfunding para irmos, muitos, todos juntos, tão lindos, lá devolver os tracinhos à segunda circular, coitadinha. C'amor.

19/01/2020

H.

Talvez o material cáustico que vertia fosse afinal uma tristeza de chumbo, depositada lenta e sólida, tristeza disfarçada – temo ver agora, só agora - vinda de uma profundidade onde qualquer impressão por leve que se pretendesse fosse feita ácido tóxico, insuportável: corroendo até ao fim.
Nem a sua típica expressão deixemos a ana teresa* seguir o seu curso traz consolo. Se ao menos agora pudesse sentir paz.

*natureza – tirada do seu glossário particular

14/01/2020

Póssere?

O que é incrivel é quatro anos depois este meu telefone esperto, primeiro e único do género em minha posse, já ter um visual nitidamente para o velhote. Estive a pensar e acho que é dos rebordos salientes e também das proporções dois mil e quinze. Sim, ele é de dezembro, daí os quatro anos, calma. Os telefones dois mil e vinte, aliás nem devia chamar-lhes telefones que isso já com certeza lhes soa a museu dos coches... dispositivos multiuso, pronto, então dizia eu que os dispositivos multiuso dois mil e vinte não têm rebordos, o dedozinho já está pro na ótica do utilizador, portanto desliza pelo vidro afora sem medo de cair ou passar das marcas, dispensando a proteção oferecida pelo rebordo dois mil e quinze, não é verdade, seus marotos?
Eu estou um pouco eufórica, já vinha assim ao volante. Ainda não tinha acabado Portugal e Espanha já bem metidinha a impôr-se nas ondas rádio, corazón cariño no se quê. Canções populares tão lindas, pelo menos eu adoro aquilo.
É que o meu precisamente corazón voltou a bater inteirinho (não andava, não). Oxalá continue por uma data de tempo assim todo todo, póssere?

13/01/2020

Um lindo dia de sol com muita estima

A reação ao nevoeiro espesso que se veio instalar sobre Lisboa hoje mesmo, protagonizada pela gata que se mudou cá para casa, é por enquanto a mesma: deitar-se enrolada sobre si própria na cadeira ao meu lado. Veremos qual será quando daqui a pouco eu me dedicar aos sete minutos de exercício físico diário. Posso estimar que 1) ela vai despertar e 2) seguir com muita atenção nos seus olhos verdes próprios de uma gata todos os meus movimentos. Estimo ainda que 3) na parte da prancha e tábuas laterais – as tábuas laterais são uma versão lateral – daí o nome – e muito pior (sim, é possível) da prancha normal, em que os meus cabelos pendem em direção ao chão sem no entanto o tocarem, o animal adorável em questão se detenha a investigar os ditos cabelos pendentes com as suas mãozinhas munidas de unhas bem cuidadas. A investigação incluirá, estimo ainda, dar um jeitinho ao cabelo, isto é, penteá-lo com movimentos essencialmente felinos. Aqui considero que vou tendo a sorte de ela não decidir deitar-se em cima de mim enquanto prancho ou tabuo e acrescentar ao meu já avantajado peso os seus três delicados quilos.

Resta-me estimar que por esta altura já esta beleza felina nos fez esquecer o nevoeiro lá fora, não foi? Eu sabia.

11/01/2020

Uma coisa é muitos (outra coisa é vinte e cinco por pessoa)

Quando entro na sala para comparecer à assembleia de condóminos do prédio, encontro duas vizinhas a acabar de desmantelar a gigante árvore de Natal, disponibilizada pelo vizinho das luvas brancas, já conhecido deste blogue, que este ano ostentou a entrada do edifício (a árvore). Fiquei então a olhar para elas dando ordens rigorosas, este ramo não está bem, aquele não-sei-quê, ponham aqui façam para ali, com voz de comando e tudo. Não, mentira. Pousei mas foi as chaves e o computador que levava para aceder aos documentos da assembleia de condóminos e ajudei-as na tarefa, evidentemente. Uns poucos de ramos de árvore de Natal espalmados depois entrou uma outra vizinha, e passamos a quatro. Esta última a mais faladora, aliás muito faladora, que não precisou de ajudar em nada, estava já a árvore plástica vencida, em partes, jazendo na sua caixa esventrada e desempenhando na perfeição (são muitos anos a virar frangos) o seu papel muito conhecido de árvore-de-Natal-que-não-cabe-nunca-de-regresso-na-caixa-de-onde-veio (numa sala perto de si), isto por mais mãos que a espalmem, e contudo todos os nossos males fossem mas é destes. Adiante: tirando eu, ali todas se chamam Ana. A Ana Faladora avança imediatamente com informações minuciosas sobre o seu Natal enquanto não chega mais ninguém para a assembleia de condóminos daqui em diante AC para o post ainda sair hoje. Eu, que de faladora tenho uma grande fama mas nem por sombras o proveito, fui ouvindo. As restantes Anas contribuíram aqui e ali com informações próprias, também de teor natalício. No entanto estas contribuições estavam a ser completamente atropeladas pela conversa ininterrupta de Ana Faladora (AF, pelas mesmas razões). Eu continuo ouvindo. Na verdade considero pouco provável que alguma das Anas presentes tenha imensa vontade de saber detalhes do meu Natal. De repente, no discorrer da descrição, diz AF que embrulhou uns cento e sessenta presentes. Eh lá, vamos confirmar.
- Quantos disse? Cento e sessenta? - quebro agora o meu lindo silêncio.
- Cen-to e se-ssen-ta, ouviu bem! - AF parece contente.
(Eu sei que a divisão de sílabas está defeituosa no sessenta.)
Com certeza abri mais os meus olhos para ouvir aquilo como deve ser.
- Sim, sim, foram vinte e cinco presentes que dei a cada pessoa! - AF acrescenta, não fosse eu estar incrédula.
- Vinte e cinco a cada pessoa!?!? -  estou tão entretida a confirmar os números de AF que não sei o que estão a fazer as outras Anas, se soubesse dizia. Provavelmente mais pessoas com outros nomes estão chegando agora à sala para a AC e conversam com as outras Anas.
- Para mim, Natal é assim mesmo, com muitos presentes! - AF remata, justificando as quantidades.
Deixei passar o detalhe de cento e sessenta não ser múltiplo de vinte e cinco e mais um ou dois vizinhos que iam - confirma-se - chegando, boa noite, com licença, uma vez que eu estava, se virmos bem, meio na entrada onde se desenrola este post.
Um post que parece mentira e até é. Mas só no ponto supraconfessado. Incrível.