a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/05/2014

Porta-chaves

Levantei-me cedo. Eu e a minha falta de ferro levantámo-nos cedo.

- Carne de vaca, tinha dito a médica - é preciso comer carninha!

O meu projecto de visitar o talho da grande superfície, já de si sem a dose de entusiasmo que me acompanha à padaria, por exemplo, foi interrompido pelo balcão do peixe, onde estava instalada toda uma colónia de belezas de carinha fresca.

Travei a fundo, derrapei ligeiramente e parei. Ora se aqui também mora ferro tão magnético como o das vacas, vamos nessa.

Apresso-me a puxar a senha do dispensador, é que vejo outra freguesa a aproximar-se e quero ser a primeira. Com esta freguesa vem também uma quantidade de entusiasmo transbordante, a avaliar pelo sorriso de olhos arregalados para o peixinho, para onde olha ela, ai que cheguei primeiro, ponha aí vinte e cinco sardinhas, se faz favor, felizmente agora sou eu. 

Olho de soslaio para a minha concorrente enquanto começo a ser atendida, a ver se ela tira o sorriso da cara quando eu digo vinte e cinco sardinhas e não estão ali muitas mais, não tira. Como que a adivinhar o meu pensamento e sendo ela, isso percebi eu, mulher comunicativa, esclarece-me prontamente: quero carapaus, eh. 

Entretanto a contagem prossegue, dezoito, dezanove, e vejo surgir no meio do gelo picado onde se deitava a sardinha dezanove um mini carapau que me desperta interesse. Olha esta mini sardinha, digo eu. É um carapau, menina, veja, e a mulher simpática, de touca na cabeça, que me avia, ergue-o para mim. Aproximo o nariz da coisita pendurada. Vejo, pois vejo, é um carapau.

Terminada a contagem para dentro do saco, que mete dentro de outro e dentro de mais outro, vem finalmente a pesagem. A mulher que me esclareceu sobre a raça da miniatura piscícola, acomoda-a agora no topo das vinte e cinco sardinhas, estende-me o aviamento e sorri-me. É oferta, diz.

- Obrigada! Esse dá para fazer um porta-chaves. - sai-me, fruto da boa disposição que as sardinhas me oferecem.

E a mulher que vai pedir carapaus mas dos grandes e é comunicativa, vi logo, diz assim: Ai que gira ela, um porta-chaves!

Se eu sou gira, na opinião desta senhora, sim, senhora fica-lhe melhor, pensando bem, o que serão estas belezas que ficaram tão bonitas na foto de família, incluindo o projecto de porta-chaves? 


29/05/2014

Pêndulo invertido

Não tendo eu a capacidade genética de ladrar, dei hoje de manhã os bons dias a um cão desconhecido.

Caminho pela rua e vejo à minha frente o pequeno cão branco dirigir-se a mim num trote ligeiro, o coto de pêlo que tem no lugar da cauda faz de pêndulo invertido muito rápido, com ângulos de cento e oitenta graus bem medidos, estou certa, e os seus olhos pretos pareceu-me que brilhavam. Estava preso a uma trela vermelha daquelas que esticam proporcionalmente ao entusiasmo do animal, veio aos meus pés entregar-me um ânimo canino que me tocou os sapatos e também o coração e eu oiço a minha voz dizer-lhe bom dia!, creio que a sorrir.

A mulher que o acompanhava também ouviu, fez uma espécie de careta e, percebendo que a saudação não se dirigia a ela, não me respondeu. Percebeu bem.

Aquele momento, ao tocar-me o coração, aqueceu-me a alma, confesso, ainda que sob admiração.

E foi o que me valeu até ao meio dia.

Hora em que, sucumbindo ao frio, liguei, no meu local de trabalho, o aquecimento no máximo.

Devo estar doente. Ou então não estamos quase em junho.

Mastodontes quadrangulares

Eu vejo serventia num cachecol do Benfica.

Se tivesse um, punha-o ao pescoço num dia em que me vestisse a condizer e que estivesse frio. Aliás num inverno como o que estamos a viver, que se enfiou pela primavera adentro sem pedir licença a ninguém, que se saiba, num inverno como este de finais de maio já vale tudo, o que não vale é ter frio.

Não iniciarei dissertações sobre moda, mas já agora fica a nota que atesta a veracidade do que digo e relata-lhe a origem: hoje de manhã enrolei à volta do pescoço uma coisa a que se pode chamar écharpe, oferta recente da minha mãe ao regressar de Paris, e só à hora do almoço reparei que no vermelho sangue do lenço, esta cor é muito apreciada por mim, lenço foi para não estrangeirar outra vez, reparei que está, o lenço, povoado de torres Eiffel em diferentes inclinações e orientações, num tom ligeiramente mais escuro e então, quer dizer, uma pessoa sai de casa a achar-se tão bem envolta neste tom sangue que aviva os sentidos de qualquer ser humano e afinal é uma coisa de loja de souvenirs!

Suspirando, enrolei o lencinho bem enrolado, por forma a deixar visíveis apenas pedaços das pernas das torres Eiffel que acredito ninguém conseguir identificar facilmente na reunião da tarde, e fico assim mais descansada.

No caminho para casa, no entanto, venho a reflectir na futilidade que me assaltou. Afinal o lenço é bonito, aquele vermelho é para usar e acabou, deixa lá as torres, o que é que isso tem? E foi então que percebi que até um cachecol do Benfica me faria serviço, como comecei por explicar.

Enriquecida com estes pensamentos tranquilizadores, passo uma vez mais por uma das maiores inutilidades dos tempos modernos, poluição visual no seu pior que ainda por cima aparece às centenas de milhar, coisa para arrancar com os dentes se os tivesse de tamanho apropriado.

Será que a malta que põe estes mastodontes quadrangulares enfiados no chão a dizer que se aluga o espaço não percebe que esse espaço não serve para nada?!?! Não?!?!

Então eu ajudo vá lá, tomar aí nota, se faz favor:

1. espaço nesta cidade falta é para estacionar mas não vejo nenhum carro ser capaz de subir semelhante verticalidade e aí se estabelecer sem ceder à força da gravidade, por muita tecnologia de que disponha;
2. para abrir um novo ginásio de dança, embora sendo melhor ideia que a do estacionamento, apenas trapezistas do circo talvez fechassem contrato, mas esse mercado é muito pequeno e só aparece no Natal;
3. se é para postar informação escrita, se é para isso, então ponham essa porcaria mais baixo, para a pessoa ao passar poder deslizar a mão aberta, espalmada, e consultar outros ecrãs.

Espero ter ajudado, qualquer coisa é só dizer.


E então? Tem ou não tem valor um cachecol do Benfica?

(nota: com todo o respeito ao Benfica, cujo futebol não acompanho, mas cuja cor me agrada)

27/05/2014

Carne de vaca

- Não fuja! - diz-me o enfermeiro do posto médico lá da empresa.

Estou sentada numa das cadeiras baixas do corredor transformado em sala de espera há não mais de dois minutos e ele veio avisar-me que tenho de esperar mais um.

- É que tivemos aqui uma urgência, é só mais um minutinho, está bem?

Eu não tenho o costume de fugir de enfermeiros, embora da última vez que aqui me chamaram o tenha feito.

Esperei uma hora e meia, dessa vez, sentada numa destas cadeiras. Li para cima de dezoito vezes o folheto de dar sangue é dar vida e duas ou três o do planeamento familiar, o do rastreio do cancro da mama li talvez umas cinco, o das próteses auditivas e o da pasta que fixa próteses mas dentárias apenas uma cada. Quase tudo isto fora do meu leque de interesses ou necessidades para além dos cuidados já em curso, mas que beleza de escrita esta, cuidados já em curso, e falta nomear a excepção que é dar sangue, situação fora das minhas possibilidades, já que desmaio antes de encher meio saco e levo uma legião de estaladas na cara, coisa que prefiro evitar. Mas porque este tema me traz um pouco culpada, li o folheto tantas vezes quantas o tempo de espera me deixou, em busca de formas de tentar salvar assim uma vida, quem sabe sob anestesia ou de cabeça para baixo, normalmente recupero os sentidos assim. Mas não.

Por conseguinte, dessa vez, abandonei o local do exame médico de rotina que a minha entidade patronal quer que eu faça, e eu agradeço, não sou mal agradecida, mas uma hora e meia à espera deixou-me com os nervos em franja, portanto o melhor foi pôr-me na alheta e ele diz que fugi.

Hoje assim não aconteceu, o enfermeiro segurou-me bem e deixei-me examinar. Depois dos testes aplicados por ele, passei para a médica. Ao ler os resultados da miríade de análises que fiz previamente, levantou os olhos e por cima dos seus óculos de leitura, dá-me a receita:

- Tem de comer mais carne de vaca, está bem? Carninha. Por causa do ferro.

- Pode ser chocolate, doutora? Daquele bem preto com menos açúcar, o chocolate tem muito ferro, não é?

- Pode... você não tem colesterol... mas carne de vaca - continuou - não se esqueça da carninha de vaca, hã? É como se fosse um remédio.

Portanto não tenho nem colesterol nem ferro suficiente.

Quanto ao primeiro, ficamos assim, nada a fazer.

Já o segundo torna-se questão mais delicada visto que me vai levar ao talho em vez de à farmácia. Não, não me estou a queixar, no talho passam-se coisas sempre deveras interessantes.

Que me dão matéria para escrever uns posts mais vermelhinhos que este.

Ou menos anémicos, como queiram.

25/05/2014

Cannelloni de espinafres

É sexta feira.

Em termos da chegada ao fim foi a semana primeiro, esta semana, e só depois, mas por pouco, a minha energia. Estou a raiar a exaustão.

De tal maneira foi o empreendimento em trabalho, que hoje larguei a teoria dos buracos negros e lancei-me numa de cometer loucuras ao almoço para angariar fundos de maneio em calorias antes de me fazer à tarde. Loucuras, dizia eu, a saber: comer uma pizza, olhe era uma pizza se faz favor, beber coca-cola, uma coca-cola das normais, nem light nem zero (nunca experimentei a zero, não sei como se bebem trezentos e trinta mililitros de ar), acabar com uma tremenda mousse de chocolate e depois traga a conta, traz?

A minha intenção para a retoma de forças era esta, mas eis que ao aproximar-me da porta do restaurante sou informada.

- Se é para pizzas, há vinte e cinco à sua frente. Vai demorar.

Eu que sempre quis estar numa fila de vinte e cinco pizzas, hoje logo é dia em que não vem nada a calhar.

- Não faz mal, come-se outra coisa.

Para melhor usufruir da angariação de energias renováveis, acho que se pode dizer assim, renováveis, arrastei um dos meus rebentos neste projecto, que isto foi mesmo um projecto.

- Somos duas, pode ser à janela?

Podia. Havia uma mesa à janela que não tinha sido tomada por nenhuma das vinte e cinco pizzas.

Muitas vezes exagero quando conto as histórias que escrevo aqui, mas desta vez eram mesmo vinte e cinco pizzas.

Sentámo-nos. De frente para a minha filha, estou em posição de lhe admirar as linhas do rosto, o cabelo, os olhos redondos, as pestanas que parecem provocar ventanias quando se movem, de a ver concentrar-se na ementa, não nas pizzas, como é possível ela ser tão linda?! Levantou os olhos para mim quando decidiu o que comer.

- Ó mãe, pára de me olhar assim!

- Assim como?

- Tu sabes como! Quero cannelloni de espinafres - e fechou a ementa.

Vieram as latas de coca-cola, agora as latas são altas e esguias. Vieram as massas.

- Fixe, olha aqui, o treinador! O médio-centro! Vou levar estas latas para fazer colecção. São giras, assim mais finas!

- Deve ter havido um motivo para isto - digo eu. Com certeza este novo design alto e esguio foi concebido para transmitir uma mensagem subliminar, das que entra no subconsciente, entendes?, as pessoas nem se apercebem.

- Achas?! - a minha filha pega na lata e roda-a na mão, olhando-a com atenção, inclina a cabeça ligeiramente.

- Acho. Até aposto que é para reconquistar as pessoas que fugiram para a alimentação saudável, apresentando-lhes agora uma lata "elegante". Beba, que isto já não engorda!

- Como nós.

- Como nós, bem, nós não vamos abandonar a alimentação saudável, sabes disso.

- Sim, mãe. Só quando cometemos loucuras, não é?! A mousse, vamos dividir ou vais pedir duas?

- Duas mousses por favor. E a conta.



(a foto tirei-a para provar que não estou a exagerar quando digo que são vinte e cinco pizzas à nossa frente)

21/05/2014

Mais alegre

Ando a pensar na globalização.

Na igualdade de direitos e na liberdade das trocas comerciais e em coisas sérias assim.

O facto de não dançar há imenso tempo, juntamente com o cheiro que o salmão grelhado do jantar lançou para a atmosfera do lar, está a pôr-me nervosa e, antes que eu faça aqui um comentário qualquer ao Cristiano Ronaldo, por exemplo lembrar as pessoas que ele é um excelente goleador, até com o pé esquerdo, que eu já vi, antes que eu resvale para coisas dessas, que hoje ele já me veio à cabeça várias vezes, voltemos à globalização.

Este é assunto muito sério e por isso há que desdobrá-lo com cuidado, pode ser que atraia cientistas que me possam, se faz favor, já agora, esclarecer as dúvidas.

A cada geração de gente o código genético vai ficando mais forte, os genes mais competentes passam ao rebento e os fracos não se replicam, certo? Também sabemos que o olho castanho tem prevalência sobre o azul, o pigmento escuro da pele, se vier mandado de África, por exemplo, predomina e o clarinho que desceu da Escandinávia, numa hipótese de combinação romântica assim, faz as malas e põe-se a andar, que o bebé sai achocolatado, é isto, não é?

Ora a globalização, que abraça projectos assim e sendo este um post muito sério há que pôr aqui a palavra projectos, com licença, ora a globalização, como se dizia, promove a mistura de genes.

Até aqui vamos bem, tirando o cheiro ao salmão grelhado e a vontade de dançar que me arrasa os nervos, vamos bem.

Ou seja, misturas de genes e misturas e misturas, África, América, Ásia, Escandinávia, Europa, as combinações fazem-se sem parar.

E depois? Depois deixa de haver cabelo loiro, olho azul ou verde, pele muito clara, ou mesmo muito escura, certo? Passa toda a gente a ter o olho da mesma cor. E o cabelo. E a pele. E depois as feições.

Daqui a muito tempo seremos todos iguais. As mulheres iguais e os homens iguais.

Não, não, isto não era para meter medo, sermos todos iguais terá as suas vantagens. Por exemplo os homens passam a ter razão quando dizem assim: "as mulheres são todas iguais", não é?

De qualquer forma, fica combinado que amanhã vou comprar um spray contra o salmão grelhado antes de me lançar à pista de dança, a ver se o post me sai mais alegre.


(é que fartei-me de rir com isto)

19/05/2014

Milão

O atraso do meu voo não é problema.

Sento-me a uma mesa do aeroporto de Lisboa e desembrulho a sandes que comprei para acompanhar o sumo de cenoura que vou beber de uma vez por causa da sede.

Eu gosto de aeroportos. Nos aeroportos relaxo sempre, leio o que me apetece, fascino-me outra vez com os aviões lá fora quando os consigo ver nas manobras ou simplesmente deixo de existir e penduro-me nas pessoas que passam.

Foi o que aconteceu.

A sandes é má apesar de ter ovo cozido. Acho as sandes de ovo cozido muito bonitas, principalmente se vierem com várias folhas de alface exibindo a frescura do verde, mas esta só tem o ovo e umas coisas de cores mortiças que a fazem gorda. Azar o meu, tem também uma camada de sal que não vem na descrição impressa na etiqueta, deve ser oferta.

Portanto, observo as pessoas que passam, mastigo, penetro nelas com os olhos afiados e elas não sabem que existo. Aliás não existo. O sumo de cenoura compensa a sandes de sal com ovo cozido, mesmo assim se eu agora existisse não aguentava comer isto.

As que correm com o trolley às cambalhotas que ora poisa uma roda ora a outra e não se consegue equilibrar na posição para que foi desenhado, o casaco pendurado no braço, a esvoaçar, quando não com uma manga a varrer o chão, essas não contam, deixo-as em paz, não vá o meu olhar atrasá-las mais.

Mas as outras. Homens de pernas altas, esguios, as abas do casaco que lhes cai tão bem a abrir e a fechar à cadência do passo firme, capta-me a atenção este caminhar, o cabelo tanto faz. Mulheres que olham em frente, levam velocidade e os ombros direitos, os cabelos soltos mas arrumados, ondulam um pouco, que belas vão.

Da sandes sobrou o papel celofane e então levanto-me, deixo o tabuleiro no carro colector de tabuleiros e dirijo-me à zona relax-qualquer-coisa, a ver se o sol se põe à minha frente e os aviões me mostram silhuetas voadoras a poisar como passarinhos, ainda há que esperar.

Entro, enfim, no hall das portas de embarque de onde o meu voo há-de sair.

- Malpensa?

- Se eu... hã? Não, não, é para a zona de relaxe - e aponto as cadeiras viradas ao sol e à pista de aterragem.

A hospedeira de terra anda à procura de alguém que queria ir para Milão, que se chama Maria Inês, alguém que está a atrasar o voo e que não aparece. E achou que podia ser eu.

O atraso do meu voo não é problema.

Problema é uma pessoa andar pelos aeroportos a ensaiar passo firme, postura de quem sabe para onde vai por forma a ondular o cabelo na deslocação e destreza no manejar do trolley, tudo isto a ver se fica bonita, e quererem meter-nos assim, de repente, em qualquer avião.

15/05/2014

Melhor que chocolate

Estou a começar a assar dentro do carro. O inverno que acabou de nos deixar andou por cá tanto tempo mas tanto, que conseguiu transformar-me numa pessoa desconfiada e agora ando sempre vestida para matar. O frio, claro, não vá ele entusiasmar-se de novo.

Hoje, por acaso, não. Parada no semáforo quando o sol está alto e o termómetro do carro marca vinte e sete graus, isto lá fora, cá dentro muito mais, desaperto o cinto, o de segurança. Depois tiro o casaco e a seguir dispo a camisola que tem a gola alta a condizer com as probabilidades de se levantar de repente um vento antárctico, nunca se sabe, ainda só estamos em maio.

O meu é o terceiro carro da fila e volto a vestir o casaco. E a apertar o cinto.

É agora que cai o verde, cai isto é, acende-se. O primeiro carro da fila não se mexe. O segundo não apita. O terceiro, já disse que sou eu o terceiro, aguarda não muito pacientemente. Precisarão eles de tempo para recuperar do vislumbre do meu descascar capturado eventualmente pelos retrovisores?

Claro que não, dou um toque na buzina. O primeiro vejo que levanta a cabeça - o smartphone está no colo e a contar-lhe novidades, é? - e arranca. O segundo também levanta a cabeça - smartphonezinho ou estaria entretido a raspar com a unha uma nódoa de molho de bife da Portugália que lhe saltou ontem para a calça? - e também arranca.

Eu, o alcatrão livre à minha frente, acelero e cruzo o poste luminoso com o amarelo no fim do curso.

Isto contado assim não tem interesse nenhum, principalmente porque não passei o sinal no vermelho e não fui multada e por isso não me posso chorar.

O que posso é comunicar que é aqui que nasce a app para smartphone que se descarrega da net já automaticamente ligada à Gertrudes ou lá como se chama o sistema de controlo dos semáforos da cidade, e que vai dentro em breve inundar de verde os ecrãzinhos dos smarties parados em semáforos a distrair os condutores, recordando-os da razão de ali estarem, que há que ter cuidado com o aquecimento global mesmo que os invernos se estiquem para lá da conta, que há gente atrás com o dedo apontado à buzina ou mesmo mulheres loucas a despir camadas de camisolas porque adquiriram o síndrome do medo de ter frio todo o ano e é preciso avançar.

Isto sim já tem valor.

Isto e eu ter chamado smarties aos telefones das pessoas.

Haverá alguma coisa melhor que chocolate?

13/05/2014

Incentivo à leitura

Encontro na lista o número de telefone que procuro e ligo. Estou empenhada em ser uma mãe completa e está na altura de assinar uma publicação mensal em nome da minha filha de seis anos e em nome do incentivo à leitura. Estamos no ano de dois mil e três.

- Abril Controljornal, boa tarde, em que posso ajudar?

- Boa tarde, gostaria de assinar uma publicação vossa, por favor.

- Com certeza, minha senhora. Já é nossa cliente?

- Não.

- Então preciso do seu nome, número de contribuinte, morada...

E eu dei o meu nome, número de contribuinte, morada...

- Vejo aqui que já é nossa cliente, mas tenho outra morada, ora confirme lá, por favor.

- Essa é a minha morada antiga, diz que já fui cliente?...

- Foi, sim, tenho os seus dados, vou actualizar a morada, ora repita se faz favor.

Repito o meu endereço e de repente lembro-me.

Lembro-me da compilação de artigos histéricos que me incentivavam a ser a líder de que a minha empresa precisava em textos ilustrados com fotos de escadas a subir em direcção ao céu, a ser a vencedora em qualquer conflito, a nem sequer viver conflitos, uma profissional que respira sucesso, transpira inteligência, veste autoconfiança, ou coisa parecida, um ser praticamente extra terrestre, agora lembro-me. Assinei a publicação que esperava me oferecesse os conhecimentos de gestão que queria acrescentar à minha formação técnica, sabedoria credenciada e debitada por sumidades em muitas matérias, aquilo prometia, tudo traduzido em português e resumido, com um nome que não envergonhava ninguém. Eu tinha, em tempos, assinado a "Executive Digest". E depois de alguns meses de lavagens cerebrais que me deixaram na mesma, felizmente, um insucesso a ensinar-me o sucesso, cancelei a assinatura e deitei aquela porcaria toda fora.

- Sim, tem razão, já fui vossa cliente.

- E sabe que publicação assinava?

- Sei. A "Executive Digest".

- A "Executive Digest"! Parabéns, uma excelente publicação! E porque desistiu?

- Não gostei. Os artigos diziam sempre o mesmo, a querer convencer toda a gente de que pode ser líder, irreal.

- Hum... Mas temos outras publicações, temos a "Exame", a "Exame Informática", temos...

- Obrigada, não é nenhuma dessas que quero.

- E que publicação pretende então assinar, minha senhora?

- A revista da "Barbie".

09/05/2014

Luz verde

Hoje à hora do almoço saí da empresa e fui lavar o carro.

O pórtico de lavagem obedece ao programa automático e anda para a frente e para trás, não sem dar um solavanco a cada mudança de sentido, por forma a percorrer toda a área da sujidade depositada nos últimos meses pela intempérie, isto enquanto esguicha feixes de água e pulveriza uma espuma branca que se deposita como se fosse neve e que cheira quase tão bem como o champô das minhas filhas. As escovas enormes rodam e dançam em cima do carro, esfregam-no todo. Eu estou fora da cena, em pé, de mala ao ombro a observar o desenrolar do programa de lavagem número três enquanto me ponho a jeito para apanhar sol.

Que bem me sinto quando estou ao sol e não estou a torrar, que é o caso presente, oferecido pela frescura presumida que vem do túnel de lavagem. E ponho-me a pensar na Luísa.

Ontem à tarde cruzei-me com ela no corredor do primeiro piso, vinha a comer um bolo seco. Sorri-lhe, boa tarde Luísa e bom proveito!

- Estes bolos, diz-me ela, são os melhores bolos do mundo!

- Ah sim?! - e deitei os olhos ao pedaço restante que parecia ter sido de uma ferradura, é uma ferradura Luísa? Ou um bolo da sua terra?... - deitei-me a adivinhar.

- Não, são os melhores bolos do mundo, já lhe disse.

A Luísa sorriu por detrás dos óculos. É mulher mais velha do que eu e eu tenho uma paixão qualquer por mulheres mais velhas do que eu. São quase sempre fontes de saber de que bebo avidamente. O sorriso cheio da Luísa encosta-lhe as bochechas aos óculos e faz-lhe os olhos pequeninos, rasgados num brilho intenso.

Depois, a mastigar e a semear migalhas, que ninguém se importa com migalhas do melhor bolo do mundo, saca do telemóvel e com o polegar esfrega-lhe a superfície e mostra-me a foto, vê?

Vejo. Vejo um tabuleiro com a família de bolos ao qual este pertence, dispostos a formar as palavras "Feliz Dia da Mãe!".

- Foi o meu mais novo.

As bochechas da Luísa continuam viradas para mim, coladas aos óculos, os olhos a cintilar alegrias também estas das melhores do mundo e a luz verde em forma de seta acendeu.

O carro está lavado.

06/05/2014

Pastilhas elásticas de gengibre

Uma das aplicações recentes da nanotecnologia foi utilizada no tamanho das garrafas de azeite da era pós-gripe A nos lugares onde se come em público e onde mais do que um par de mãos as emporcalha.

Certo, nano é um bocadito exagero, mas vá, minitecnologia. E tecnologia porque gosto e mini porque também, especialmente numa esplanada de beira mar, com um livro, que saudades tenho disto, e uma brisa fraquinha que não vire as folhas ao livro (não uso livros electrónicos, lidos em locais ao ar livre onde há moscas, a mosca ao pousar na brancura da página vira-a e isso acho aborrecido).

Foi a implementação da gripe A que veio para mandar, há uns anos, e que decretou a) líquidos de desinfecção de mãos em todo o canto onde caibam os dispensadores juntamente com cartazes ilustradores da esfrega ideal para manter a bicharada fora, b) nunca mais dispensar talheres em cantinas e sítios de buffet que não estejam embrulhados em papel, película aderente, bolsa de plástico asséptica ou, ainda melhor, todos juntos, c) as garrafas de azeite e vinagre tamanho mini a terem que juntar-se à cerveja da mesma estirpe, até aqui está correcto, pena é que em dias de peixe cozido, lá na cantina, haja que pedir uma garrafa de azeite a cada dez minutos de almoço e ficamos por aqui.

No entanto os mandamentos desta gripe vão acabar porque segundo li hoje no jornal, a campanha de desinfecção de mãos não surtiu efeito nos hospitais, único lugar onde as pessoas ainda faziam a esfrega à risca, e às mãos, segundo a mesma fonte. É que as infecções não abrandaram na propagação, a verdade é esta.

Eu em tendo tempo, debruçava-me sobre coisas com interesse, que podem realmente trazer benefícios à sociedade e que não requerem tecnologia por aí além. Por exemplo, criar pastilhas elásticas com sabor a coentros. Para quem vive no estrangeiro e suspira de saudades de um arroz de tamboril malandrinho, as pastilhas podiam facilmente expedir-se em três dias úteis e fazia a pessoa o gostinho ao dedo. Outras haviam de ser com sabor a alho, que tanto dá para matar a saudade da ameijoa à bulhão pato em se consumindo a seguir à variedade coentro, como dá para usar em quantidade dupla, para mandar afastar gente indesejada sem se arruinar a reputação de pessoa polida, bem educada. Numa terceira aplicação das ideias inovadoras que me povoam o espírito a cada dia que passa, haviam de surgir em prateleiras perto de si as pastilhas elásticas de gengibre. Sim, gengibre, que eu não dispenso semelhante maravilha da natureza. Ora a pastilha de gengibre, tomar aí nota, é para utilizar com afinco quando se quer captar a atenção de alguém que está distraído a teclar no telemóvel ou a postar uma selfie no facebook em vez de desatar a beijar-nos.

(devido ao facto tristonho de eu não ter conta no facebook nem fazer selfies, que ainda só faço retratos de mim mesma mas poucos, gosto mais de flores, desdenho aquelas palavras e ponho-as em itálico)

05/05/2014

Cicatrizes

A chinesa pequenina tem os olhos molhados. Parece que chora. Está na fila do aeroporto e está uma volta da serpentina de gente que se aproxima da zona de controlo de bagagem de mão, atrás de mim.

Há minutos, quando a fila ainda escoava, ora estamos de frente, ora de costas, em serpentina acomoda-se a gente melhor, ela teclava no vidro do seu aparelho de comunicações com as unhas capeadas a gel (deve ser isto o gel embora pareça plástico duro). Quase choca com o passageiro da frente quando ele pára, paramos todos, a funcionária do controlo de metais e líquidos que as pessoas levam para os aviões fechou a passagem com a cinta de extremidade embutida na peça de plástico que encaixa no pequeno poste cilíndrico.

São 19h52 e nos altifalantes anuncia-se, pela segunda vez desde que entrei no edifício, que às 20h00 se vai fazer dois minutos de silêncio pelos soldados mortos na segunda guerra mundial e já agora em todas as guerras.

É assim nos 4 de maio na Holanda. Leva-se a sério o dia de lembrar os que combateram na guerra, que no dia seguinte, o dia 5, é dia de festa, comemora-se a libertação dos Países Baixos pelas forças aliadas. Assinou-se acordo com os alemães e tudo. O fim da guerra deve ter sido, para quem a viveu, uma alegria cheia de dor a que a minha imaginação, por mais que estique, não chega.

A chinesa pequenina das unhas cor de rosa, que ainda está uma volta de serpentina atrás de mim, não percebe o evento iminente e pergunta ao passageiro da frente, o que é? Ele explica. Do outro lado, mais alguém pergunta e mais alguém explica. O bruaá vai diminuindo até se diluir em roçadelas de roupa e cliques de malas a pousar no chão. A chinesa pequenina guarda imediatamente o dispositivo em que estava a teclar e fica assim, absorta nunca saberei em que pensamentos da guerra onde o seu mundo não esteve. E parece que chora.

Os empregados antes distribuídos pelas diversas linhas de controle de metais alinham-se agora em frente ao mar de gente no qual me dissolvo.

Durante dois minutos o aeroporto de Amesterdão cristalizou num silêncio absoluto.

Depois, a chinesa pequenina desapareceu e não lhe vi mais as lágrimas. Queria chorar como ela, mas não soube como. Queria chorar por nós.

Por nós que não tivemos esta guerra, que não lambemos estas feridas e que não transportamos estas cicatrizes na alma.

Mas o que temos nós então?

04/05/2014

Até a noite cair

Openlucht museum, Arnhem, Holanda

Não foi Jan Vermeer quem pintou esta obra, isto nem é uma obra, mas foi com o azul da palete dele na ideia que ontem tirei a foto.

Se a luz pode fazer isto, entrar, deixar-se cair na cadeira e lamber a parede às tiras a testar o sabor do azul, se pode fazer ricochete nas alvuras que encontra pelo caminho, se torna este castanho quente como o outono, se esta é a cor que me prende os olhos e me enterra no infinito das sombras que oferece, se isto pode ser assim, Vermeer fez o que tinha de ser feito.

No museu ao ar livre os exemplares de casas holandesas, trazidos de cada canto deste pequeno mas rico país e aqui reconstruídas, estão vivas. Dentro desta está uma mulher vestida ao rigor daqueles tempos, em cima das socas que o mundo inteiro conhece. Tem o cabelo ruivo apanhado num carrapito à toa que deixa pender madeixas em caracol desalinhado, a saia rodada é preta e quase toca nas socas, a camisa branca com rendas e folhos. Explica aos visitantes como se vivia aqui há cem anos.

Animais e pessoas no mesmo espaço, o ambiente ficava assim mais quente ainda que mal cheiroso, a mulher aperta o nariz a completar a ilustração que ela própria encarna. E havia as moscas, claro, os animais era isto, mau cheiro e moscas. Os piores, os porcos, não tinham lugar cá dentro, ninguém os aguentava à mesa da sala, quando ainda não no prato, mesmo em tempos de muito frio os porcos é fora que estão.

- E o azul, este azul nas paredes? - pergunto eu, a querer ouvir Vermeer, Jan Vermeer e uma história de amor.

- O azul, diz ela a sorrir, o azul tinha de ser este. Era usado em todas as casas para afastar as moscas.

As moscas. Com moscas não sei ouvir uma história de amor.

Mesmo assim, sentei-me. Fechei os olhos à luz para que ela poisasse no meu brinco de pérola e aí ficasse até a noite cair.