a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

09/05/2014

Luz verde

Hoje à hora do almoço saí da empresa e fui lavar o carro.

O pórtico de lavagem obedece ao programa automático e anda para a frente e para trás, não sem dar um solavanco a cada mudança de sentido, por forma a percorrer toda a área da sujidade depositada nos últimos meses pela intempérie, isto enquanto esguicha feixes de água e pulveriza uma espuma branca que se deposita como se fosse neve e que cheira quase tão bem como o champô das minhas filhas. As escovas enormes rodam e dançam em cima do carro, esfregam-no todo. Eu estou fora da cena, em pé, de mala ao ombro a observar o desenrolar do programa de lavagem número três enquanto me ponho a jeito para apanhar sol.

Que bem me sinto quando estou ao sol e não estou a torrar, que é o caso presente, oferecido pela frescura presumida que vem do túnel de lavagem. E ponho-me a pensar na Luísa.

Ontem à tarde cruzei-me com ela no corredor do primeiro piso, vinha a comer um bolo seco. Sorri-lhe, boa tarde Luísa e bom proveito!

- Estes bolos, diz-me ela, são os melhores bolos do mundo!

- Ah sim?! - e deitei os olhos ao pedaço restante que parecia ter sido de uma ferradura, é uma ferradura Luísa? Ou um bolo da sua terra?... - deitei-me a adivinhar.

- Não, são os melhores bolos do mundo, já lhe disse.

A Luísa sorriu por detrás dos óculos. É mulher mais velha do que eu e eu tenho uma paixão qualquer por mulheres mais velhas do que eu. São quase sempre fontes de saber de que bebo avidamente. O sorriso cheio da Luísa encosta-lhe as bochechas aos óculos e faz-lhe os olhos pequeninos, rasgados num brilho intenso.

Depois, a mastigar e a semear migalhas, que ninguém se importa com migalhas do melhor bolo do mundo, saca do telemóvel e com o polegar esfrega-lhe a superfície e mostra-me a foto, vê?

Vejo. Vejo um tabuleiro com a família de bolos ao qual este pertence, dispostos a formar as palavras "Feliz Dia da Mãe!".

- Foi o meu mais novo.

As bochechas da Luísa continuam viradas para mim, coladas aos óculos, os olhos a cintilar alegrias também estas das melhores do mundo e a luz verde em forma de seta acendeu.

O carro está lavado.

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