a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/02/2021

Centro de dia

Ainda eu andava em trajos menores pela casa, já estava o senhor Valério fazendo uso da sua cópia da chave a meter o seu pai no pomarzito que nos serve de jardim para ele podar as árvores. Ele o pai. As árvores são como já se percebeu de frutos. Mas tirando a pereira que dá umas pêras e pêras, e a oliveirazinha por causa das folhas inconfundíveis, eu não sei de que frutos estamos a falar porque estas árvores não se chegam à frente no que toca a dá-los. Porém o que interessa agora é que o senhor Valério me havia prometido vir trazer o seu pai às dez e, se muitas vezes ele aparece depois da hora prometida, ou não aparece de todo, hoje optou por vir - vá-se lá saber porquê - muito antes dela. Nem bebi o café como deve ser escondida atrás da janela. Entrei apressadamente para o duche imprescindível antes de aparecer ao senhor António, pai do senhor Valério, completamente pronta.
O senhor António está bastante animado a cortar os ramos que ele considera demasiado compridos às árvores, incluindo a que está toda florida de branco e que eu adorava saber que fruto irá ela proporcionar um dia quando se decidir a isso. Para não dar assim muito má imagem, e eu supondo este meu interlocutor um conhecedor da poda, aproveitei enquanto ele tomava o café que lhe ofereci e comentei ao de leve, Nunca sei muito bem se aquela com as flores brancas é macieira ou... Não, talvez pessegueiro ou nectarineira... Nectarineira nunca eu tinha ouvido senão agora mesmo dito por mim, portanto substituí imediatamente por árvore que dá nectarinas.
- É isso, é - esclareceu o senhor António.
- Isso o quê, pêssegos ou nectarinas?... - tenho uma vaga impressão que macieira não será, que essa está mais a nascente e dá flores cor de rosa, que lá flores elas sabem dar. 
- Ou pêssegos ou nectarinas. 

Hum. Há pois que esperar que a dona árvore se decida produzir qualquer coisa que se coma para ficarmos a saber. Mas logo a seguir o senhor António colmatou a sua falta de conhecimento botânico ou agrícola.
- Um dia destes trago cá as minhas ovelhas para lhe desbastar esta erva!
- Ovelhas?... - normalmente prefiro cabras, mas ovelhas também pode ser.
- Sim tenho lá duas ovelhitas que gostam muito desta erva. Vinha cá deixá-las de manhã e buscá-las ao fim do dia.
(Tipo creche ovina. Ou centro de dia.)
- Pode vir trazê-las quando quiser, senhor António. Se vier já amanhã é preferível, porque eu ainda cá estou e sempre dou um olhinho nelas.

(E tirar-lhes muitas fotografias e guardá-las na memória, evidentemente. Já disse que não tenho facebook nem instagram. Também não tenho mbway nem bimby. Nem paciência. Mas vou ter duas ovelhas por um dia.) 

17/02/2021

iminência, Eminência

Penso que me desvio das colisões possíveis em ruas que não largas, embora flutue dentro de minutos brilhando com ciência. À beira de nós o molho de raminhos vivos mostra uma nudez na totalidade de si como pastéis quentes, inocentes. Nem assim me livro da iminência de, não um, mas todos os pássaros. No chão que segue veloz, relativamente, registo esquadrias do mesmo verde. A teimosia a deitar-nos beleza ensurdecedora, ensurdecedora, beleza... Ouvi. Ouviste?

12/02/2021

Tipo três palavras

Hoje de manhã, na reunião em ZOOM, estive de pantufas apesar do casaco de executiva em xadrez muito jeitoso. O cabelo também não foi trabalhado para se apresentar melhor (é sexta feira e isso). De repente oiço-me dizer assim “é o meu sonho” e logo a uma pessoa que tinha acabado de conhecer (no ecrã). Não deu tempo de ficar aflita porque continuei, felizmente, a falar. Notei apenas que a janela não se escandalizou, as cortinas não esvoaçaram, as rosas de tecido muito bonitas na jarra azul fumado não se indignaram. O meu tricô, que jaz praticamente na mesma, também não acusou qualquer sensação, a internet não falhou, isto é, a ordem das coisas manteve-se como se eu não tivesse pronunciado aquelas palavras, como se eu tivesse, por exemplo, dito bom dia ou tipo isso.

***

A Saminhas diz que mesmo que as pessoas como eu (velhas) se esforcem muito a introduzir “tipo” nas suas frases e até consigam (como eu) fazê-lo no local certo da frase, a coisa não sai bem.

- Ai, não? – pergunto à senhora doutora tipo Saminhas.

- Não. É que tipo vê-se logo, mãe, soa mal, fica demasiado “tipu”…

Muito interessante. Somos, é o que é, uns inaptos movimentando-nos desajeitadamente fora da habilidade especial e exclusiva de dizer “tipo” uma vez em cada tipo três palavras. Tipo como é evidente, eu tipo não concordo.

08/02/2021

Dá logo vontade de comer sopa

Na Antena 1 são a esta hora anunciadas prováveis cheias para as próximas horas, com certeza nos interstícios de um território já suficientemente cheio de outras vicissitudes por exemplo do foro da saúde. Ora no terraço tardoz do edifício onde tenho morada fiscal verificou-se já esta manhã uma dessas cheias, um exemplar portanto muito à frente apesar de tardoz. O terraço encheu-se imenso pela calada da noite, tendo apresentado à aurora e aos pombos regionais uma verdadeira piscina sem forma nenhuma de jeito. Mas piscina. Pois os pombos aproveitaram logo para umas chapinhadas na frescura matinal do tardoz (para não repetir terraço). Foram vistos a caminhar nas zonas de pé, ou pata, e banhar como poucas vezes se pôde assistir mesmo que por pessoas já entradotas, agora a sério. Tardoz é uma senhora palavra e é quase tão capaz como hortaliça. Na verdade, nenhuma palavra vence hortaliça. Nem interstícios o faz, vicissitudes ou mesmo entradotas.

04/02/2021

Aromês

Reflito com os cabelos molhados sobre as abelhas produzindo todo aquele mel que não quero ingerir. Antes observar paragens de autocarro especialmente quando estão fornecendo primaveras por cima. Ou, vá lá, o aroma a coco, todo lembrando-me as idas violetas imperiais.

Sim, que leio os rótulos debaixo da água quente com o mesmo empenho outrora produzido frente à caixa de Nestum (com aquele) e verificando claro que todas as traduções disponíveis. Podia ter avarias diferentes.

Estando pronto o duche, faço cumprir a função do rodo essencialmente de cima para baixo, enfim proporcionando o descanso querido ao contador do fluido limpo e frio, não sei se sabias, a pingar.

(contudo, o frango estufado com ervilhas chama em aromês, vem do fogão e é urgente)