a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

24/06/2022

Queques baratos (assados)

Ontem, antes das nove horas, tinha de fechar a torneira do gás e estar apresentável para receber o técnico inspetor na minha fração, o que poderia acontecer a qualquer hora durante toda a manhã. Era o que dizia, nestas e noutras palavras, a nota colada na parede interior do elevador e também recebida por e-mail. É muito importante respeitar os caminhos do gás, verificar amiúde se eles estão de boa saúde. O gás quer-se saindo das suas condutas quando e como pretendemos, mantendo os seus tubos borrachudos dentro do prazo, para que a função controlada da sua queima se dê, e nunca permitindo que a natural vontade física e química do mesmo prevaleça. Qualquer criança mais atenta já desconfia disto. Então tomei o banho sem fazer caminhada até ao rio e fechei a torneira do gás às 8h50. A seguir, fui de novo olhar para a página aberta do livro de receitas que por pouco não foi para o lixo e os queques intitulados de baratos lá estavam fotografados há décadas junto a um serviço de chá parecido com os da Vista Alegre, debruado a dourado. Verifiquei os ingredientes na despensa e encontrei todos à exceção da pitada de baunilha, que decidi substituir por raspa de limão. Pincelei com margarina o interior das formas de alumínio, tortas e de tamanhos heterogéneos, originárias da casa dos meus avós e, antes de lhes ajeitar um fiapo de farinha distribuído nas paredes côncavas para que os queques vindouros pudessem desalojar-se tranquilamente depois de assados, a campainha soou. Perguntei no intercomunicador quem é?, mas já tinha quase a certeza de que seria o técnico do gás. E era mesmo.

Os queques ainda estavam muito quentes quando foram fotografados e metidos no whatasp* para as miúdas, uma em Lisboa, já cheia de trabalho, a outra passeando o início das férias pelo Porto. Ambas ficaram admiradas e contentes com o facto de eu ter feito os meus primeiros queques assados, baratos ou não.

*Pseudopalavra extremamente imbecil que eu me recuso a esforçar por escrever corretamente.

16/06/2022

Alarmes há muitos

Acordo com um apito ao longe. No quarto, a luz azulada sugere que são seis da manhã. Um apito do género (para não dizer tipo) ti ti ti. Dentro do sono em curso de ser arrancado tento identificá-lo. Parece-se com vários alarmes de teor eletrónico. O da máquina da roupa quando termina o ciclo, o da mesa de cozedura, também conhecida por placa de cozinha, quando sente um cheirinho de água em cima dos pseudobotões continuados no vidro, o do frigorífico com a porta aberta há mais tempo que o limiar, o do meu relógio de pulso quando chega uma hora que eu estabeleci sem querer, o do micro-ondas, o do carro quando não apertamos logo a correr o cinto, o da câmara de vigilância quando os seus sistemas internos verificam as possibilidades. Ti ti ti. Também eu tenho sistemas cá meus, na sua maioria orgânicos, que andam ofendidos há tempos com o manancial de alarmes em que se encontram de uma forma bastante permanente. Esteja onde estiver. Ora numa casinha como esta, em plena serra, não deitando mais de cinquenta metros quadrados de implantação em dois pequenos pisos, dou-me conta do surpreendente potencial de pequenas mas obtusas, indesejáveis alarmidades. Quem diria. 
Com o sono já fora de mim, arranco-me à cama munida da fresca intenção de detetar o aparelho em apuros, e retorná-lo ao seu estado silencioso quanto antes. Assomo primeiro à janela aberta, da qual provêm os inúmeros cantares da passarada; meto-lhe os ouvidos. O concerto é realmente bestial, quase capaz de abafar aquele ti ti ti metidinho. Quase, ou eu ainda estaria a dormir. Apurando os ensinados sensores, deteto-lhe a origem longínqua, talvez da encosta a poente, talvez junto ao curso de água que corre para a cascata, talvez de uma das ruínas da rua, cobertas de trepadeiras. O ti ti ti que me despertou não é, afinal, de fonte eletrónica, informa-me a experiência agora mais capaz. É sim tão orgânico como o meu ouvir, como o suspiro que me sai, como o deslumbre que me enche a alma. Ti ti ti é o piar de um passarinho. Só não sei é qual.

07/06/2022

À saída do escritório (a meias)

Ao fim da tarde meti-me na casa de banho para fazer a troca. Remover os sapatos em princípio elegantes pelos sapatos de ténis com meias. Meias, quer dizer, aquelazinhas que se ficam por vestir o pé e espreitar uns milímetros acima do gargalo do sapato. Não sou amiga delas por causa da sua mania de descaírem até aos dedos dos pés logo ali ao passo número trinta e quatro ou trinta e cinco. Irrita uma pessoa, mas é a moda. Nem nas lojas se encontra outra coisa. Só na loja do chinês, imune a caprichos mercantis, se consegue comprar meias normais das boas que ficam no sítio nem que a gente faça dez mil passos muito largos. Nunca percebi que mal têm essas meias para terem sido barbaramente substituídas por aquelazinhas que não sabem o que é um tornozelo com frio, mas quem sou eu. Então hoje resolvi suspirar fundo e utilizar com fé renovada o único parzinho que escapou à limpeza de há uns meses quando tirei da gaveta esses erros que cometera e deitei tudo no caixote do lixo. Tudo o que sobrava, na verdade. Metade delas já tinham perdido os pares algures entre o tambor da máquina de lavar e as paredes que lhe sustentam as voltas da centrifugação, de tão minúsculas. E isto hoje porquê? Porque ontem a Saminhas me garantiu que ficava mesmo horrível usar os sapatos de ténis para o caminho até ao escritório com um par das meias subidas como eu gosto de vestir o tornozelo. Ó mãe, isso fica horrível, ouvi eu pela manhã. Ora venho então eu hoje a sair do trabalho já com aquelazinhas nos pés quando a Joana passa por mim, apressada. Vou apanhar o comboio, explica-me. Eu acelero para a acompanhar, logo esquecida do resultado que aquilo pode dar dentro dos meus sapatos de ténis. Descemos as escadas juntas e notei que também ela já havia feito a troca: dos sapatos de salto pela sua própria versão de ténis mais meias. Ambas preparadas para enfrentar a calçada lisboeta com os seus interstícios, ângulos vivos e miniplanos inclinados em todas as direções, uns polidos outros não, às seis e tal da tarde, sim sim. Descobrimos que vamos para o mesmo lado da rua. Faltavam alguns minutos para a hora do seu comboio. Onde moras, Joana, perguntei. Ela respondeu, enquanto olhava para o relógio e apressava mais o passo. Eu também, ainda que sem comboio para apanhar, metro ou autocarro. Tão só a alegria renovada de ter de novo colegas com quem fazer os caminhos para casa. Se não inteiros, pelo menos a meias. Mesmo que daquelazinhas.