a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/11/2019

Margaret

Não sei porquê, dá-me sempre vontade de escrever no comboio ou no aeroporto. Mas agora é no comboio. Vai todo sujo, este. Leva, imóvel no chão, um m amarelo possivelmente coberto de bactérias gulosas. Da coleção de chocolates em bolinhas coloridas m&m's, já se vê. Mas como é só um, digo m (não foi engano). Ainda é muito cedo, era noite completa quando entrei no comboio, as cadeiras vão quase todas vazias. Sujas e vazias. Também por ser sábado (o irem vazias).
Tenho estado a pensar na vida infeliz de tantos membros da coroa britânica, com particular incidência em Margaret. Por causa de ter andado a ver a série, sim, a série!, "The Crown". Sinceramente prefiro ir num comboio sujo tendo por companhia o m amarelo, possivelmente bacteriano, estendido no chão, do que viver naquele enquadramento de salamaleques e sabe-se lá que constrangimentos, espartilhos e frustrações. Talvez mesmo um certo tédio now and then. Que sorte tive de não calhar nascer naquela família. Nem sequer um pequeno blogue decerto poderia manter para atender a estas vontades que me dão no comboio. E chegando aqui, de repente rematar que o céu já está a clarear dum lado.

29/11/2019

Dia da tampa laranja

Temos, nesta pequena e pacata cidade holandesa, a seguinte organização entre outras, muitas (por acaso adoro). Amanhã passa nas ruas o camião de esvaziamento dos contentores de tampa laranja: plástico e metal, embalagens. Isto é evento para estar nas agendas de todas as casas, naturalmente. Mas basta olhar pela janela e ver que Joop, o vizinho que mal vê - do seu sofá, imagino - umas folhitas de árvore no chão do seu arranjadíssimo jardim, vai soprá-las para a rua com a sua máquina especial de soprar folhas barulhenta, basta ver que Joop, dizia eu, já pôs o seu contentor de tampa laranja em posição, a uns vinte centímetros do lambril do passeio, para dispensar a consulta da agenda. Vou então eu também, munida de casaco e botas apropriados ao tempinho que faz, puxar o nosso próprio contentor com a cor da tampa certa. Vou ser a segunda da rua. Já está escuro, mas dá para distinguir as cores das tampas e pego no contentor certo. Atravesso a rua com ele e posiciono-o alinhado com o de Joop, de soslaio verificando se a posição está corretamente paralela à rua e a distância ao lambril bem medida.  Amanhã os braços-robot do camião que vai passar encontrarão tudo em ordem, o seu encaixe será perfeito, sem folgas nem desvios, nas adequadas ranhuras do recipiente. 
A acrescentar a isto, é um bocado, como direi, surpreendente que o camião ande sempre tão limpinho (é um gosto vê-lo, camião), mas deve-se isso em parte, já refleti, à exata geometria com que toda a vizinhança colabora no orquestrar da situação. Não posso negar que tem a sua beleza. Se amanhã a oportunidade vier, ainda vou e faço uma foto para ilustrar. Porém, era aqui que eu queria chegar, de cada vez que empreendo a colocação do contentor determinado pela organização local - há também o de tampa verde, o da tampa azul e o da cinzenta - sou acometida de uma vontade metidinha de colocar na rua em posição, como se por engano, um com tampa da cor errada. Para testar o sistema, ver que tal. E, quem sabe, é capaz de não ser demais, sair no jornal local.

25/11/2019

O silêncio da cor

Acordei a pensar nisto. São dezenas de milhares de pessoas, só em Lisboa, a vibrar com os concertos do André Rieu. Música, luz e cor. Ou cor, luz e música. A ordem não importa quando o mote é a alegria coletiva. Então porque não sinto eu a urgência para lá ir também, imbuir-me da festa, sair levezinha, como decerto seria, as angústias esmagadas em nada, os medos que me assaltam de noite vestidos de anjos?
Mas depois - o silêncio! - compreendi. Ao contrário do fenómeno André Rieu, quando a orquestra se veste de preto é para que os instrumentos brilhem nos seus metais. É para que as madeiras, tranquilas, aqueçam as notas no ponto. E se forem de cordas, o silêncio da cor dá-lhes o espaço para vibrar. O silêncio da cor. E então a música vem inteira. Pura, suave, dura, chorando ou dançando, agonizando até, ela traz intacta a alma do poeta que a escreveu, sentindo. Como uma oração, um respeito completo, um outro interior. E só assim, sem exuberância adicional, a minha alma insegura, incerta de estar, friorenta, pode abrir-se e, quando capaz, experimentar a alma do poeta como se ela fosse ele. Só assim serei tomada por dentro. Num concerto de André Rieu, estou certa, seria tomada, ah seria, mas apenas por fora.
E depois, sabes, o silêncio da cor, a música que permite sentir, serve de exercício para melhor te compreender. Para melhor ver o mundo. Se não o todo, pelo menos o teu.

23/11/2019

Não é que seja especialista em não cumprir promessas, mas é que me esqueci de mostrar a casa de banho!

E isso não é coisa que se faça, evidentemente. Uma casa de banho tão agradável de se estar, tão renovadinha e bonita, é que não dá vontade de se sair de lá! Até podia correr o risco de perder os meus queridos leitores se não a mostrasse com toda a brevidade. Tss tss.

Berlim-Lagos-Berlim

Já ontem à noite, antes de dormir, notei que ela tinha o computador aberto à sua frente. Senti que não era uma série que estava a entretê-la, que era outra a sua ocupação. Da minha cama na posição de baixo do beliche, podia vê-la com o computador, na sua cama, no outro beliche do compartimento do comboio, na posição de cima. Mas adormeci. A noite foi correndo sobre os carris ibéricos, a um ou outro chocalhar mais decidido acordo, mas realmente não passa nada. 
De manhã, já dentro da manhã, ainda Espanha não está toda feita, vou ao bar do comboio munida do meu livro beber um café com leite de vaca. A bebida está suficientemente quente para me dar tempo de terminar de ler um dos melhores livros que já vi. Capitães da Areia, do Jorge Amado. Estrondoso, belo. Não hei de largar de insistir com as minhas filhas enquanto não o lerem também. Termino a leitura e fico nostálgica ali a beber o resto do café com leite de vaca vendo-me refletida no vidro da carruagem-bar. Estou, claro, mais rica. Muito, mesmo.
Pago o euro e meio que me é pedido e volto para o meu compartimento-cama de quatro ocupantes, duas carruagens a sul. E é aqui, cheia do final dos Capitães da Areia, que entabulo conversa com ela, a única passageira restante deste compartimento. As outras duas saíram mais cedo, deixaram Espanha a meio. Disse-lhe que fui tomar café ao bar, para começar. Ela é magrinha, tem o cabelo loiro e apanhado, e deve ter uns vinte e três anos de idade. Veio a pergunta que vem sempre: porquê fazer a viagem de comboio (quando o avião custa pouco mais do que o café com leite de vaca?). Passado este tema obrigatório, perguntei-lhe onde esteve em Portugal. No Sul, diz ela, em Lagos. Fui com uma amiga que ia fazer surf e como tenho a tese para acabar, fiquei a trabalhar, enquanto ela ia para o surf. Tese de quê, eu quis saber. Medicina. É só o que me falta para acabar o curso, acabar a tese. Ena, dei-lhe os parabéns, desejei-lhe felicidades na sua vida profissional que está agora a começar. Uma nova médica de Berlim, ela vive em Berlim, que foi escrever parte da sua tese em Lagos. E agora, aqui bem perto de mim enquanto escrevo este post, a tese continua a ser escrita, na cama do beliche ao lado. Faltam vinte minutos para a viagem terminar.

22/11/2019

Ia-me esquecendo de mostrar o chão tão lindo que ficou

Passados imensos meses do fim muito querido das obras de renovação realizadas no meu apartamento, deteto, a páginas estas de novembro maduro, que me esqueci completamente de mostrar no blogue quão lindo ficou o chão escolhido para a varanda, a lembrar um pátio alfacinha e coisas boas do género sardinhas assadas, junho, fado e roupa estendida nas cordas a cheirar a omo ou persil (já não me lembro qual é o que cheira bem).

Como não tinha nada em arquivo, pedi à minha filha Saminhas que tratasse do assunto com o seu telemóvel munido de câmara fotográfica bem boa e melhor que a do meu próprio telemóvel, dado que as câmaras fotográficas de que dispúnhamos em separado, tipo só mesmo a fazer de câmaras fotográficas sem quaisquer outras funcionalidades como aquecer a sopa, estender a roupa ou levar o carro à oficina, dado que essas, dizia, sumiram na última ronda de roubos.

E então? Ficou o chão lindo ou não?


(pronto, prometo que foi a última)
(por agora)

19/11/2019

é Huawei, é

Desde que uma certa gata me entrou no coração sem pedir licença, acho que é no coração que isto acontece, a capacidade de memória do meu telefone esperto entrou no vermelho (claro). O telefone vai fazer quatro anos comigo, é preciso notar. Uma relação duradoura, zero riscos no vidro, um querido até certo ponto. Que tenho uma gata não digo, a posse é toda relativa, e em princípio não possuo gatas. Neste caso, foi ela que me escolheu, disse a minha mãe e a minha mãe sabe imenso de gatos em geral (as marradinhas em redor de mim, os olhinhos de fazer muita pena dela, os miados adoráveis e isso tudo). Portanto a gata é que me tem a mim. E eu tenho o telefone esperto (aqui possuo) embora não muito muito. De maneira que ando a tirar fotografias à gatinha (ela ainda é pequena), e não é poucas, é muitas, mas não tenho culpa de ela ser tão fofinha e diabrete. O telefone não é muito esperto, tal como já disse, tendo começado a apresentar a gata ao contrário nas fotos, a sério (posso.mostrar.com, a pedido). Mas, mesmo ao contrário, querido telefone, a gata fica tão bem que até faz impressão, etc. Após uns dias de muitas fotografias ao contrário, que eu não reduzi o ímpeto nem nada, vem o google com uma ideia brilhante de estilizar fotos que ninguém lhe pediu apresentando sugestões em verdes e vermelhos garridos de mau gosto que me lembram um histerismo americano (nunca mais fui ao web summit, por falar nisso). Uma maçada e eu a querer trabalhar. Não liguei, nunca ligo ao que é impingido, obviamente tenho mais o que fazer.
Mas depois o google deu-se conta (fiquei admirada) e veio comentar numa próxima intromissão metidinha e não solicitada que achava haver fotografias ao contrário no meu álbum ou lá o que é aquele backup instantâneo chato. Fiquei admirada, já disse. Principalmente porque daí em diante o telefone arrependeu-se e tornou a fazer as fotografias da gata que me tem direitinhas. Ora eu ah bom, assim 'tá melhor. Um a zero para o google e para já.

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Adenda de embelezamento (ao contrário)
Segunda adenda (com rotação administrada pelas tecnologias vigentes)

07/11/2019

O dois-em-um

A vizinha inglesa do botox pintou o cabelo de uma nova cor. Tenho-a visto de manhã, quando chega a carrinha do correio. O condutor e carteiro, um dois-em-um com pouca vontade de se levantar do carro, para a carrinha vermelha com o símbolo da corneta dos CTT entre a nossa casa e a destes vizinhos ingleses e toca a buzina com um fervor que não denuncia uma grande alegria pelo seu trabalho. Ao que consta, a vizinha faz muitas compras pela Internet, que este dois-em-um carteiro-condutor vem entregar. Tem sido todos os dias e as buzinadelas insistentes e impacientes também. Ela demora a aparecer. Quando surge, arrasta-se pela rampa abaixo até à rua, nas suas roupas meio pijama meio fato-de-treino, e fala com ele num português engraçado, porém possivelmente carregado de nuvens negras dependendo dos dias. Ouvi-lhe o português engraçado quando, há dias, abri a minha porta a ver se estava ali alguém a morrer devido às insistentes buzinadelas tremendas. Mas não estava, era só o carteiro-condutor e a vizinha do botox abeirando-se do carro. Eu disse-lhe bom dia vizinha, mas ela não respondeu, ou não ouviu ou está-se a borrifar, o que também pode ser o caso. Todavia hoje, pela hora da carrinha passar, e parar, as buzinadelas foram de tal modo prolongadas, que eu achei que agora sim, havia mesmo alguém a morrer e fui de novo à porta. Desta vez não estava ela, mas sim o vizinho seu companheiro que hoje, suponho, veio fazer a recolha da encomenda em sua vez. O carteiro estava só com metade do corpo dentro do carro, para variar, à procura de algo que terá caído entre os bancos – isto explicou-me o vizinho muito civilizadamente ao ver-me surgir alarmada detrás da minha porta, mas que raio (what the hell…) – e o carteiro dois-em-um, ao procurar o cartucho ou lá o que seria a coisa, apoiava-se nas costas do banco inclinadas para a frente sobre o volante, não sei se dá para ver, quer dizer, imaginar. O banco a encostar com força na buzina, esta julgando ser a sério respondia direitinho, tocando em modo contínuo, enchendo a ex-pacata aldeia de uma inquietação trazida em pacotes e que é consequência, afinal, de uma vida muito muito infeliz.

06/11/2019

Muito obrigada a todos

Eu gosto deste blogue, muito. A palavra “deste” não tem link, o blogue referido é o presente, mesmo. Ou é mesmo um presente. É que passados tantos anos disto, ter sempre, mas é que sempre, pessoas boas a lê-lo e a comentá-lo é muito bom e é balsâmico.
Muito obrigada a todos e todas pela presença e pela generosidade, por deixarem aqui as vossas palavras e/ou o vosso tempo (parece que me estou a despedir, mas não estou, é um agradecimento sem calendário, sem ser o fim, o Natal ou um aniversário). Por mim, era começar a servir chá e café, biscoitos e fatias de bolo a toda a gente que vem e se senta um pouco, relaxa, e aqui se entrega, mais ou menos, nem que seja pelos minutos de ler. Se isto fosse um lugar físico, seria assim o presente blogue. Sofás e cadeiras, bancos, almofadas coloridas, velas e música de fundo, por exemplo também livros. Toda a gente a conversar, a partilhar. Era era.

Porém – por agora – melhor ser virtual o presente, mesmo, que eu talvez fosse entupir o ambiente com fotografias de gatinhos fofos e gatinhas que me entraram pela vida adentro como se isto fosse tudo deles e delas. Dela, para ser precisa. A safada. Esta.

(parece muito santinha)
(mas é uma cabrita)
(traz da caçada grilos estonteados que entrega de presente e depois deita-se a descansar a beleza)