a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/10/2019

Uberizei-me

Ontem, quando precisei de me transportar da Av. Almirante Reis para o Campo de Ourique em hora pulsante de tráfego, sito em Lisboa, e estando o meu carro a marcar lugar longe de mim, fui ver as minhas opções. Tomar dois autocarros desconhecidos e meio descoordenados, oferecendo probabilidades, sendo eu a passageira, de errar o alvo na paragem de descida ou sabe-se lá de que outros desvios seria capaz. Então senti que tinha chegado o momento de dar o passo.
Já era de noite. Os carros a passar, a apitar, a acelerar, a fazer enfim coisas de carros, bufando no semáforo vermelho enquanto não sai o verde. Enchi-me de animação. Tinha vinte e seis minutos para fazer o trajeto. Então saquei do telefone inteligente e chamei a app já por tempo pertencente ao meu conjunto pessoal de apps por estrear. Ora logo à cabeça o ecrã mostra um mapinha cheio de moscas. Pareciam moscas a tremer, eu sem óculos de ver bem, a noite caída como já disse, as luzes dos candeeiros de rua a não ajudar imenso. Adorei as mosquinhas, é verdade, ainda me distraíram lembrando os jogos no computador velhinho, onde já vão esses tempos. Mas logo percebi a cena, as moscas eram carrinhos, oh c’amooor como diz a minha irmã Ana imitando as suas alunas, repito-me, e fui informada que o carro estava a dois minutos de mim. O carro? Mário?! Quem é o Mário? Já?! Mas aceitei tudo o que apareceu para aceitar no modo userfriendly e avancei para a relação iminente. Não correu bem. O carro chegou tão depressa, quais dois minutos de nada de magrinhos, que eu nem tive tempo de pestanejar e ajeitar-me ali no passeio eu toda animada. Resultado, não interpretei que aqueles faróis quase à minha beira eram os supostos guardiães da matrícula que eu devia reconhecer e que, óbvio, se encontrava invisível devido à noite e às luzes a encandear-me. O meu ex-futuro primeiro motorista Uber desistiu de mim e pirou-se. Mário! Vi que era ele, quando passou bem perto, mas já era tarde demais. Logo olhei para o ecrã na minha mão lançando chispas dos olhos encandeados e dizendo a mim mesma que afinal a paragem de autocarro é que vai ser, mania de modernices que não me querem para nada. Porém a safada da apezinha agarrou-me pela rapidez no serviço, pela inteligência, pelo golpe de cintura e nem um passo eu dei, logo passei a estar com um novo motorista Álvaro?! a quatro minutos de mim. E desta vez a coisa deu-se, a app é minha amiga, isso eu posso dizer que senti. O carro, quando entrei, boa noite, com licença, a cheirar tão bem de lavadinho (o meu carro também quer!!), o som ambiente meio que acolhedor, eu logo fiquei tranquila. A viagem aconteceu lindamente, incluindo vislumbrar fotografias do bebé do motorista, Álvaro!, o bebé é tão parecido consigo!, que era, e então bebés, que eu adoro, o oh c’amoooor é aqui que fica. Logo quis saber o Álvaro se eu ia a apanhar muito ou pouco vento, que eu dissesse caso algo não esteja em conformidade, eu disse pouco vento, muita conformidade. E pouco também foi o que paguei, um euro e dezoito cêntimos a mais quando compararmos com a opção dois autocarros mais uma chance de me tresmalhar. Cheguei ao destino faltavam dois minutos para a hora marcada. E no fim ainda veio mail a informar que estou muito bem cotada na rede, diz que sou cinco estrelas. Ah pois é.

29/10/2019

Um bom coração era para ser aqui

Há muito tempo que não faço uma ligação aqui neste pequeno blogue empoeirado e com uma ou outra teíta de aranha, só um momento, ultimamente deu-me para gostar de aranhas e também de osgas, está bem está, já me deve faltar pouco para abraçar um gafanhoto, ai senhores, mas não me querendo desviar do foco, o que eu vinha dizer é que hoje ando bem disposta, bem mais do que devia e já lá vamos.
Do que devia?! (que estranho) Tendo em conta que a minha casa foi assaltada de fresco com pés e mãos de lã, outra vez, é isso que quero dizer. Pensava eu e os polícias (no último ano entraram em minha casa uns doze polícias ao todo e acho que não me falta conhecer nenhum dos que ficaram de fora), e toda a minha família e arredores também pensava que os miseráveis já se tinham empaturrado com o que levaram das outras vezes e agora, com fechadura nova de alto gabarito, se teriam desencorajado, porém não.
Isto somado ao apito nos ouvidos e à dor de cabeça que ainda não saiu, dava para andar cabisbaixa. 
Mas logo ontem, dia em que me dediquei à esquadra da Polícia da área de atuação, obviemos os pormenores, li um post num outro blogue que me alegrou por dentro e veio mesmo a calhar essa alegria. Era aqui que eu queria chegar quando peguei lá em cima e depois derrapei. Não li só um post num outro blogue, atenção, li vários em vários blogues e como só leio o que gosto, em todos me alegrei. Mas este que vou dizer alegrou-me por dentro por causa da imensa generosidade, que é o mesmo que dizer, por revelar um bom coração.
Se há coisa que me faz feliz é tropeçar num bom coração. Ora o post é este.

(Penso que na lista referida no post linkado está este blogue da teíta de aranha, e isso poderia pôr em causa a imparcialidade da minha manifestação. Pois paciência, não chega para me deter.)

25/10/2019

Por obséquio

Tenho em mãos um trabalho de tricô que já não se usa. Mesmo eu, teimosa veterana rejeitante de novidades de que não sinto falta e portanto fora de moda, mal lhe pego! Por vezes, levo-o a passear de carrinho para aqui e para ali, acondicionado no seu saquinho e bem acompanhado de intenções. Até lhe comprei umas agulhas circulares para, no comboio ou numa sala de espera onde me possa eu encontrar, não dar agulhadinhas em quem me ladeasse e aí pôr-me a produzir à vontade. Só espero que não dar agulhadinhas em quem me ladeasse esteja suficiente para se visualizar a cena hipotética que as agulhas circulares vêm salvar. Mesmo assim, todo equipado e prevenido, o trabalho já vai ganhando um pózinho por cima que é revelador.
Tudo isto porque, quando acabei as obras em casa, me enchi de entusiasmo e decidi não comprar mas fazer capas novas para duas almofadas dos sofás (não vou nem a meio da primeira) e agora, instalada no comboio regional, o outono holandês a deslizar, todo querido, na janela, eu bem calminha, o tricô já ia. Mas só se eu não o tivesse deixado ficar em Lisboa, claro, que um trabalho destes não se pode guardar na nuvem ou pedir a alguém que de lá mo envie por obséquio e por Whatsapp ou por e-mail num instante. Olha que lindo.

22/10/2019

Ata Luna. Spânia.

Há dias, precisei de comprar, com certa urgência, uma caixa para transportar animais. Gatos, por exemplo. E como não dispunha de vontade de procurar em lojas da especialidade, longe de mim, fui à loja dos chineses que não só estava perto de mim, como já sabemos que tem lá tudo (mas tudo, um enigma).
A chinesa dona da loja, que conheço há anos de a ver ali atrás do balcão, mas acho que ela nunca se lembra de mim, indicou-me o corredor especializado em oitocentas coisas incluindo caixas de transporte de animais.
Lá fui eu por ali fora, o corredor não é dos curtos, e escolhi uma caixa azulinha com corpanzil para levar dois gatos de uma vez, pareceu-me, e ainda aproveitei para registar na memória os restantes artigos afins. Nunca se sabe.
Quando me pus a caminho de regresso à caixa de pagamento com a caixa de transporte na mão, uma mesma palavra pode dar para tanto, ela estava ao telefone a falar o que para mim era completamente chinês. Abrandei então o passo e fingi interessar-me pelos chinelos de quarto ali pendurados suficientemente perto para me permitir ouvir a conversa. Os estalidos e as exclamações, evidentemente, aquilo encanta-me. De resto, é, como já disse, chinês. Quando decidi que já chegava de ouvir chinês, aproximei-me do balcão e a dona da loja terminou a conversação e olhou para mim. 
- Qué chineu? Qual qué numbo?
Até aqui ainda se traduz bem.
- Não, obrigada, estava só a ver.
E depois confessei.
- Gosto muito de ouvir falar chinês.
Sem se impressionar com o que eu disse (afinal se calhar lembra-se de mim) ela esclareceu-me, então, sobre o teor da conversa, deduzindo, bem, que esse eu não tinha podido interpretar.
- É Ata Luna.
- Como?
- Ata Luna. Spânia.
- Como, desculpe?
- Ata Luna, Ata Luna. Spânia.
- Espanha? Tem familiares em Espanha? - experimentei.
- Si, Ata Luna.
E então mostra-me, no seu telemóvel, as imagens dos protestos que decorrem na Catalunha.

Quando dou formação sobre temas nada a ver, costumo ainda assim mencionar que a comunicação é fundamental. Continuo, porém, a sentir que não se lhe dá a devida importância. Continuo, também, a sentir que, se a comunicação tivesse palavras e tivesse ouvidos em proporção equilibrada, talvez muitos protestos, destes e doutros, pudessem ser evitados. E como fiquei dias a pensar neste episódio da loja dos chineses, tinha de vir aqui contá-lo ainda antes de pegar ao trabalho. Bom dia!

20/10/2019

Perdido por cem perdido por mil (contudo nem sempre)


A passageira parisiense que, na estação de Biarritz, veio sentar-se no lugar ao meu lado, primeiro assustou-me devido à enormidade da mala que trazia. Para avançar no corredor central e único do comboio de grande velocidade, a senhora puxava a mala com visível esforço. Por sugestão sua, para que melhor nos encaixássemos ambas, eu deslizei com a minha tralha já em ação desde há três estações atrás, computador e os afins do costume incluindo uma garrafa de água, para o lugar à janela, o seu, e ela senta-se no meu, mais acessível para manter a sua grande mala debaixo de olho, que tal? Por mim, está excelente, digo. Fico portanto a ver a França passar a grande velocidade mais perto dos olhos. Mas, após o susto inicial e pronto a ser ignorado, um atraso que nasceu pequenito foi crescendo a cada paragem, cedo começando a ameaçar a tranquilidade da viagem e aí oferecendo um susto maiorzinho. Isto porque no meu caso não adoro perder o próximo comboio e ficar entregue ao natural fluir do encadeamento da vida, por vezes recheado de injustiças prontas a saltar para fora da caixa delas (agora usa-se muito isto da caixa, especialmente do lado de fora). Eu seguia concentrada no meu trabalho, mas ainda assim pude reparar na quantidade desabitual de passageiros extra a entrar no comboio. Eles provêm de uma longa espera visto que, informou-me a nossa passageira (passa a nossa), os dois comboios anteriores haviam sido cancelados devido a certa greve. Mau. Eu a pensar que tinha tido sorte por ter escapado à greve o meu comboio (meu, mas não muito muito) e que portanto ia fazer a viagem lindamente. Começaram, então, a acumular-se passageiros no corredor, metidos com as malas, passageiros, outros, sentados nos degraus das escadas entre os dois pisos do material circulante (ou podemos repetir comboio), e no chão, em frente à casa de banho, já toda inacessível, sentavam-se outros passageiros nos interstícios deixados pelas bagagens. No altifalante, o chefe de cabine ia pedindo milhares de desculpas, às mil de cada vez, pelas condições e pelo atraso, ok. A dada altura percebi que ia perder a ligação seguinte, a margem de que dispunha estava já consumida até ao limite. E foi aí que a passageira parisiense ao meu lado me tentou ajudar (eu tinha-lhe contado da minha possível perda iminente). Mostrei-lhe, na app, as minhas intenções de apanhar o percurso de metro recomendado por ela, app, para chegar à estação seguinte, a bela Gare du Nord, e aí um novo comboio (uma espécie de complicação). Ora esta senhora, certificada e validada pela sua condição de residente em Paris, instruiu-me noutra route, uma que, não parecendo, seria menos morosa, mais minha amiga nesta hora da escassez dos minutos. Experimente, ela disse. Pensei aquilo do perdido por cem perdido por mil, talvez esta nossa senhora tenha razão e, após saltar do comboio a rebentar pelas costuras o mais cedo que consegui, corri, furei o mar de gente naquela estação de Montparnassetambém ela recheada demais, contornei as obras de uns melhoramentos, bem precisados esses melhoramentos, ó senhores!, a ver se já agora pelo caminho limpam a estação, pensei, desci escadas quase a voar e fui. Tomei a nova route sugerida pela nossa senhora e à revelia da app.

E agora toma (vai buscar): não perdi o comboio por dez minutos, perdi-o por cinco. Um-zero para a nossa passageira, que ganhou à app!

(A greve deveu-se ao seguinte, para quem estiver interessado: há dias, um comboio local, algures em França, uma composição com duas carruagens, teve um acidente. O maquinista, único membro da tripulação na composição – em comboios tão pequenos é a regra – ficou ferido no acidente e, ferido, ajudou outros passageiros, também feridos. Os colegas, em todo o país, já desde longa data contra atribuir a comboios pequenos apenas um trabalhador, que é o maquinista, fizeram esta greve, querem mais tripulação nas composições.)

14/10/2019

Trinta segundos em prancha na boa (ah pois é)


Já contei em diversos círculos, incluindo este, que faço sete minutos de exercício físico todos os dias. Quer dizer, quase todos os dias. No início, apesar de parecer mentira é verdade: ficava a transpirar imenso e a arfar como sei lá o quê, que agora não me ocorre uma boa analogia. Ainda deu para umas dorzitas musculares daquelas que nos fazem sentir que estamos no caminho certo da linha corporal, vamos vingar no sentido da saúde e por aí adiante (as queridas lérias). Mas agora que já atingi a maturidade do exercício, transpiro quase nada, as dores musculares abandonaram-me e o arfar foi com elas. Ou seja, tornou-se ainda mais aborrecido aquilo. Comecei, então, a bocejar inadvertidamente lá para o segundo minuto e a olhar para o relógio sempre que a posição corporal o  permitia.
Tenho vindo a dizer a mim mesma que não se perdia nada em duplicar a dose e fazer catorze minutos de exercício, para energizar, tornar a entrar no mundo das dificuldades, ter de novo os músculos a doer e isso. Mas ainda não tive determinação suficiente para dar esse passo, que até me poderá levar ao adormecimento. Portanto, dei outro. Comecei a pôr música a tocar durante os tais sete minutos. Música! Como é que não me lembrei disto antes? Tss tss. E não é que a música é minha amiga? Já não bocejo, quando posso marco o ritmo dela e os sete minutos até passaram a parecer segundos (para não dizer primeiros) e não muitos, poucos. Já se está mesmo a ver qual será o próximo. Passo.

10/10/2019

A estatística fofinha

Há dias (vem aí mais uma história da casa da serra, tem muitas), há dias estava no meu próprio terraço ao sol, de costas para ele e para o terreno das árvores de fruto, cujo solo é prolífero em insetos, florzinhas e ervas indiferenciadas. O terreno atira-se para o vale que se estende a perder de vista, terminando numa fieira de oito geradores eólicos no monte mais longe e, em baixo, pode ver-se (mal, mas pode) uma autoestrada muito fininha. Todo este conteúdo virado a sul, ou seja, o sol encima-o batendo-me então em cheio nas costas, o que eu adoro. Os nossos novos vizinhos ingleses estavam a partilhar o momento com um café com biscoitos combinado anteriormente num encontro junto à carrinha do pão. A conversa, também inglesa, fluía. Devo referir que em poucos meses três casas passaram a estar habitadas na aldeia, todas por ingleses não ligados uns aos outros. O Brexit dá-me graça. Mas adiante. Estava então o casal de ingleses que vai chamar-se o casal Ridley aqui para nós. Deixaram lá a vida deles na ilha unida, não é, e vieram de armas e bagagens aterrar nesta aldeia beirã que há pouco tempo tinha por especialidade ser deserta, não contando com os javalis, veados, martas, cobras, corujas... A mrs. Ridley fala pelos cotovelos como diria a minha mãe e conta imensas coisas da vida deles. O mr. Ridley é mais de ouvir.
Eu gosto muito de estar nesta casa na serra em comunhão com a natureza, as estrelas e o som da coruja à noite, a receber os novos vizinhos que largam tudo e vêm à aventura. No entanto, nos dias de sol, vivo com medo que algum gafanhoto proveniente do lado sul descrito ali em cima venha desvairado por aí fora, falhe a pontaria no seu voo em salto picado sem destino certo e aterre em cima de mim em vez de no chão do terraço que é tão extenso e apropriado e já foi testado para o efeito por muitos gafanhotos de tantas gerações, lindamente. Mesmo estando eu a ocupar cada vez mais volume e consequentemente mais área, o chão bate-me largamente em metros quadrados disponíveis para o pouso dos referidos insetos apatetados. A estatística parece, portanto, estar a meu favor e daí a tranquilidade com que sigo conversando com estes vizinhos recém chegados a Portugal, enquanto esqueço os coisos.
Mas, está-se mesmo a ver que, tal como nos filmes, o óbvio vai acontecer. Ouço então, a páginas tantas, um tiquezinho à minha esquerda e sinto uma leve pressão na pele nua do meu antebraço. Posso imediatamente, neste picossegundo, constatar, horrorizada, que estão pousadas imensas patas verdes de um enorme gafanhoto bem na minha pele. Não tive tempo de as contar uma vez que me dediquei a saltar (agora eu) da cadeira à velocidade da luz ou perto dela e...
Não. Não vou dar mais detalhes, já basta ter divulgado que a minha área aumentou devido ao volume, etc. Vamos mas é ficar por aqui.

(É capaz de levar algum tempo até que os vizinhos Ridley se esqueçam do meu lado mais, hum, descontrolado e eu recupere alguma da minha imagem de tranquilidade confiante na tal estatística e, enfim, no mundo em geral... só não sei como não desmaiei)

09/10/2019

Para quê pipocas quando se tem rainhas cláudias e um bolso para caroços?

Saí da reunião no Cliente Segundo já noite quase caída, o que é novidade desde a hora anterior, estava aí o março. O ar fresco acolheu-me com alegria! Ou talvez a alegria fosse toda minha. Desço o campus em direção ao carro levando o entusiasmo pelo trabalho delineado de fresco, um novo projeto bem apresentado, distinto, um senhor projeto. No caminho para casa, paro no supermercado para autoaumentar a alegria (aqui podemos meter uma nota de rodapé entre parêntesis para que a nota saia da sua zona de conforto e dizer assim: tipo como quem no cinema come pipocas para aumentar a alegria de ver um filme, acertei?). Então compro uma caixinha do sushi que me anda a apetecer há semanas, uma garrafa de vinho branco, uma anona macia que era espanhola (era), bananas para mais tarde e ameixas rainhas cláudias que me dão água na boca, tal como de costume. Aliás só de escrever sobre elas já me estão a dar de novo (há bué que não falava nas pipocas no cinema, tenho-me portado bem). Vou portanto lindamente servida do supermercado para casa e depois não quero continuar a engordar. Tem cá uma graça.

08/10/2019

Tipo socorro

Quando eu era pequena não havia nem cão nem gato que passasse perto de mim que não levasse com os carinhos mais caprichados, atenciosos, assentes no expoente das minhas capacidades do espetro das ternuras. Assim andei até as visitas que fazia a certa casa, pessoas das amizades dos meus pais, me porem, invariavelmente, num estado lastimoso. O facto de nessa casa morarem três gatos não me despertava nenhum aviso, apenas me fazia feliz por ver os bichanos de novo (e claro que eles também gostavam de mim, pensava, senão por que não fugiam e ainda fechavam os olhos todos encaixados no próprio pelo à passagem da minha mão?). Portanto, no final dessas visitas, quanto a mim, o tremendo inchaço nos meus olhos, já só no estado de fechados, o arranhar na garganta atrapalhando-me a respiração e a aflição do meu nariz que não sabia onde havia de se meter, tinha origem, provavelmente, num defeito só meu, que se manifestava sempre naquela casa especial, logo por azar. A minha mãe então disse: tu deves ser alérgica a gatos. Levou-me a fazer os testes respetivos a um consultório médico onde eu haveria de passar muitas tardes a fazer os trabalhos de casa, depois da escola, em cima das cadeiras da sala de espera. Alergia aos gatos! E das grandes! O médico arregalou os olhos para a senhora reação do teste no meu braço e disse, Esquece os gatos. Eu esqueci.

Passados todos estes anos sem eles, vida sossegada a minha, aparecem-me no terraço, na casa da serra, três exemplarzinhos a fazer miau de seguida, ainda crianças. Ora, toda a gente sabe que gatos pequeninos são total e absolutamente irresistíveis, situação da qual eles estão cientes, dela se servindo conforme lhes der jeito. Isso pode observar-se no intervalo de andarem a caçar gafanhotos pelo arredondar dos olhares quando lhes bate a fome nas barriguinhas peludas, sendo isto um exemplo. As marradinhas nas nossas pernas também não ajudam e os sons emitidos em rrrrrr idem. Então, com os eucaliptos por testemunha e dizendo a mim mesma que é só desta vez, não me deixarei apanhar, abri uma lata de atum ao natural. Dispus o peixe num pratinho que coloquei no chão: três cabecinhas em redor, mnham mnham e cinco segundos para o prato ficar a brilhar de limpo. A partir daí foi pescada cozida com batata e as espinhas retiradas com muito cuidado, ovo cozido esmagado para ajudar à mastigação, asinhas de frango cozidas, desfiadas, sem ossos, claro, e acepipes do género. Basta-me abrir a porta que dá acesso ao terraço (ver figura 1) para dar de caras com os três bichinhos implorando, um miarzinho aqui outro ali, quando não vêm a correr (a galope?) até derraparem já junto ao prato que entretanto aumentou para dois números acima.

Já me encontrei, inclusive, a pesquisar na internet onde se compram casinhas para gatos de exterior, uma vez que para dentro de casa já sabemos que não posso. É que vem aí o inverno e coitadinhos o frio. Estou nisto. Estou nisto e estou feita.
 (Figura 1 - Os culpados)