a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

31/03/2021

É favor desculpar qualquer coisinha, mas o que tem de ser coiso

A direção geral da saúde (e não de saúde, embora esse seja o estado que todos desejamos a qualquer direção geral, evidentemente), a direção geral da saúde, ai, diz para as pessoas ficarem em casa. A sério, diz diz. Agora já não é só pelo motivo que toda a gente com mais de dois anos de idade sabe, mas também por causa de poeiras africanas que deram entrada possivelmente pelo Algarve, as porcas. Realmente notei qualquer coisa ontem quando fui levar o final da tarde ao rio e mostrar-lhe como está melhor o meu dedo, coitadinho. Mas não liguei muito a isso e até já estava a tentar ver naquele tom amarelado (que a fotografia da direita não sei se captou) uma certa poesia e assim, tipo manias. Porém, como ia ao telefone com a minha mãe e ela me avisou logo das poeiras, filha tu vê lá as poeiras, abandonei o projeto poético. Mesmo assim, fica a menção a elas no bloguezinho e a fechar o mês, o que já não é nada mau.

Abaixo: descubra as diferenças (uma tem mais vinte e quatro horas que a outra, que amor).



24/03/2021

A tampa fora de si

O voo descendente do frasco de café e mistério a ele associado podia ser o título de um livro se não quisesse ser de um poema. (mas a especialidade desta casa não é essa)

Claro que não estou a inventar coisas, aconteceu de facto, pela – não mão, mas – patinha branca de perfeição total, na forma e na beleza inerente, que esta noite, por via, talvez, de eu lhe ter recusado comidinhas para gato e outras atenções às quatro da madrugada, que esta noite, dizíamos, decidiu ir chegando, com jeitinhos lá dela, muito elegantes, tip tip, o frasco do café até ao bordo do balcão da cozinha entregando depois o assunto nas mãos da gravidade, que nunca falha, e eu, claro, eu com o catchapumbum de grande porte que ecoou pela casa, acordei (outra vez). Quando cheguei à cozinha, a cambalear – o sono, o andar ainda torto, por afinar – e a apertar o roupão para substituir num instante o quentinho da cama, observei com espanto que o frasco de vidro resistiu ao embate. Estava em pé, numa só peça, quer dizer, completamente inteiro. A tampa sim fora dele (a tampa fora de si!) a seu lado no chão e alguns pós de café moído também, mas não muitos. Lá que o tip tipezinho foi cirúrgico, deu para perceber. Todavia, não pude ainda compreender, nem com toda a minha física atómica e molecular, que voltas deu o frasco, já dissemos de vidro, para cair assim, de pé, todo ele tão graciosamente intacto.

17/03/2021

E depois mudei para a Antena 1

Quando, no meu novo espaço de trabalho, instalei a pequena aparelhagem de rádio e leitor de CD que comprei na Internet, comecei por sintonizar a Smooth FM. Já sabia que a Antena 2, teoricamente a minha estação de rádio preferida, não me servia ali por duas razões: uma, sintoniza mal a onda e isso obriga-me ao suplício de ouvir ruído branco e, duas, começou a incluir no seu menu habitual programas de folclore. Ora folclore não obrigada. Por isso mudei-me para a Smooth FM. A Smooth FM passa sempre as mesmas canções, mas eu ainda não sabia. São canções a roçar o género Jazz, ao estilo americano. A Smooth FM podia ser uma boa rádio se passasse Jazz original, uma Ella Fitzgerald, uma Billie Holliday, uma Sarah Vaughn, ou um Frank Sinatra, um Oscar Peterson, entre tantos outros. Mas não. Esta rádio passa sobretudo imitações, tributos, cópias. Como oiço rádio enquanto estou a trabalhar, oiço-a o dia todo. Por isso, passados alguns dias de Smooth FM, comecei a achar a música insuportável. Alguns intérpretes, imitadores baratos, ora desafinando obscenamente, ora gemendo em vez de cantar, faziam o meu braço saltar e carregar rapidamente no botão que corta o som. Uma destas vozes foi a rainha do voo do meu braço para esse tão útil botão. Quando ela começava a cantar, era como se viesse meter na minha garganta um pacote inteiro de manteiga rançosa a escorrer, insultando todo o meu interior. Se ainda se vendessem discos, era de afixar um dístico na capa destes hipotéticos exemplares à semelhança do que se faz com os maços de cigarro: ouvir isto provoca náuseas. Chama-se Anita Baker.

15/03/2021

Sermos felizes para sempre

Fui tomar café a um postigo, como é evidente, que hoje já se podia. Tomar café e comprar livros, mas começar comecei pelo café. Quando lá cheguei, pedi um ao postigo. É uma nova espécie de café. Há o curto, o cheio, o escaldado, o pingado, o com cheirinho e a italiana também há. Agora acrescenta-se o tipo ao postigo. Mas disseram-me que em princípio não podiam, que não tinham a certeza se eram um postigo. Porquê, perguntei eu toda achando que sabia. Porque nós não estamos na rua, estamos num centro comercial, disse a senhora lá de dentro do balcão. Ah, então um postigo presume-se que abre para a rua, o ar livre, suponho, emiti em voz alta. No entanto, devem ter visto o meu ar mascarado e esfomeado por um café-café e sim senhor, arriscaram dar-me um. Um que veio servido em copo descartável de papel com tampinha de plástico excentricamente furada. Um furo ovalizado ao baixo pelo qual se pode beber a iguaria. E depois disseram-me que tinha de ir para a rua. Pela primeira vez na vida fui mandada para a rua, se bem que com pouca veemência, portanto não deve contar. Ao chegar a ela, encontrei o sol inteiro para me consolar. Mas aí lembrei-me que umas centenas de passos depois podia beber o querido café em casa e sermos felizes para sempre. Fizemo-nos, então, ao caminho. Enchi-me de cuidados para não respingar nem um átomo da preciosidade através do furo excêntrico e ovalizado ao baixo. Ao cruzar a rua, escondi muito bem o copo de papel descartável com as mãos postas de certa maneira, mantendo-o longe de olhares sabe-se lá quão cobiçosos, os parvos. Era o que mais faltava, fossem lá ao postigo mais ou menos como eu fui. O café é meu. Era. Foi.

12/03/2021

Nunca percebi aquilo do google sinto-me com sorte nem quero

Hoje ainda não fui propriamente andar. Fui sim ao supermercado. No corredor dos feijões, estava uma senhora de cadeira de rodas que ela própria conduzia. Quando me viu aproximar dos tais feijões, dos encarnados e dos da variedade manteiga, dirigiu-se-me com a voz, olhe se faz favor. Para além de olhar, eu parece que sorri, mas não se pode ter a certeza. Ela pediu-me então para lhe meter no saco que levava atrás, pendurado na cadeira, um frasco de feijão encarnado e outro de feijão frade. Entalei, devagar, os frascos pedidos entre uma alface cheia de folhas (de alface) e a parede, digamos, do saco. Avisei a senhora que a situação estava a chegar ao limite da capacidade do mesmo. Ela sossegou-me informando que a seguir ia para a caixa. Enquanto acomodava os frascos, devagar tal como já disse, aproveitei para conversar um bocadinho de nada. Disse-lhe que gosto muito do feijão encarnado mas esta marca da variedade frade nunca comi. Nem esta nem várias outras, o feijão frade é o mais aborrecido no campo dos feijões, talvez seja do nome. E áspero no sabor, ainda por cima. Mas isto eu não disse, para não cansar a senhora com conversa que ela não pediu e que a mim é que apetece. Tivera o saco mais espaço e eu havia de me oferecer com veemência para nele colocar outras mercearias da sua lista. E, claro, continuar a conversa. Talvez sobre a origem do atum enlatado, a filosofia do vazio nas azeitonas descaroçadas, o bico do grão do mesmo e de conserva. Se pudesse até lhe contava da experiência matemática e surpreendente que fiz com estes grãos, mas secos. Ainda por explicar. É que estou aqui estou a pôr-me a falar com toda a gente que me passar pela frente, nem que seja na televisão. Já faltou mais para acender o meu exemplar da caixa que mudou o mundo de propósito. É que já não se aguenta o confinas.

10/03/2021

São sete os brotos contados


Mais a Sul, também se confirma o fenómeno (10.3.21). Estas atrevidas realmente! Pôem-se pela calada a deitar corpinho comprido na forma de uma haste toda feita à janela, que só muitos centímetros depois se faz notar. Por isso deitei-lhe a mão e amarrei-a preventivamente à estaca de pôr o assunto na ordem para lhe conferir ao menos certa verticalidade. Ela aceitou e está de esperanças com sete brotos bem contados.

É domingo (se fosse não era preciso dizer)

São nove e um quarto da manhã. O sino da igreja fez a sua música das nove horas enquanto o sol entrava em vagas indecentes, bem anafadas, transbordantes, dignas de uma inveja magnífica, dentro da cozinha. Aí passava eu um livro à Saminhas para ela acompanhar com o seu café e comentávamos a recente falta de uma nota no sino, o que faz a música habitual parecer um miúdo na muda dos dentes (desabitual).

Mas comecei o dia (não falando no varrer dos cacos das cinco da manhã, não digo quem foi que atirou o candelabro lindo, grande e de vidro com a vela grossa desde o cimo do piano para o chão) a ler a Cláudia R. Sampaio. Os seus poemas são como caramelos absolutos e viciantes, cerejas gordas e pretas comidas num dia de junho, num dia do princípio de junho, em jardim absorto de pássaros, cantos e flores, os poemas dela não se consegue parar de comer, ainda não se acabou um e já se quer o próximo, uma pouca vergonha e não só uma pouca vergonha, como também um domingo inteiro de sol, uma clave e um papagaio maluco tudo junto.

(quem tem gatos tem cadilhos, quem não os tem não sabe o azul e doce, o ácido e musical, o aromático e macio que é tê-los)

(também ninguém me mandou ir para a cama e não pôr o candelabro e a vela a salvo de certas situações)

(tal como já faço com várias outras peças a proteger da morte todas as noites)

(onde é que já se viu)

06/03/2021

Não é domingo

Fui ao supermercado local e não havia nem bicha à porta, nem fila. E nem gel no dispensador para as mãos de quem entra (ou sai). Comprei legumes para sopa e, destes, os agriões foram os únicos a vir em embalagem de plástico. O nabo e a curgete vieram como deus os pôs no mundo e safaram-se perfeitamente. As batatas, como se tratava da família toda, pai, mãe e vários filhos, acomodei-as num saco de rede que vai à máquina. Trouxe um iogurte para me servir de sobremesa ao jantar de sábado em pote de vidro. E já foi. Não soube muito a sobremesa, mais soube a sobremesa saudável. Tudo o que é saudável sabe ou a húmus sem sal ou a sopa fria também sem sal. Ou ainda a folha de alface lavada, não temperada. Tirando o tofu. O tofu sabe a esponja de banho antes de usar e depois de estar ao ar a perder qualquer cheiro químico que possa lá vir. Que isso, o tofu não proporciona, graças a deus. Também trouxe umas amêndoas da Páscoa revestidas de chocolate saudável. Mas desconfio que vai ser preciso meter três na boca ao mesmo tempo para saborear qualquer coisita. 

Ao anoitecer, a gata Marble estava com a vontade habitual de ir visitar o prédio por dentro (é o ir à rua de gato) e foi para perto da porta manifestar aquela inequivocamente. Para bom entendedor (entendedora, só cá estava eu) meio miado basta. Não é bem miado, é krrruuu, krrruuu. Mas meio bastou, realmente. Só que, como eu continuava a trabalhar no computador e não corri a satisfazer os desejos urgentes e felinos, ela aumentou a sua manifestação de interesses deitando abaixo da escrivaninha alta que era da minha mãe um vasinho de barro que uma das miúdas fez na escola e que hoje é o lar de uma suculenta, coitadinha. Aquilo foi um estrondo capaz de fazer sombra às obras do quinto. Claro que acudi logo aos estragos com pá e vassoura. E depois não levei o diabrete à rua.

03/03/2021

Saudades

Depois de almoçar em frente à televisão arroz de camarão com coentros e salada fazendo companhia ao jornal da uma, fui à cozinha tirar um café na máquina nova. Fiz o procedimento devagar. Mudei a água do depósito. Encaixei a base com o plano superior gradeado, depois de a lavar debaixo da torneira. Gosto de encaixar a base na máquina porque me traz a lembrança de construir com peças de LEGO. Admiro o encaixe perfeito das peças. Depois, de regresso à sala e ao sofá, a tarde já havia amadurecido um nadinha mais. Sento-me com o café servido numa chávena Vista Alegre que comprei há muito tempo para aumentar a minha duvidosa felicidade. Silencio a televisão e noto, vindo da rua, o ruído dos contentores do vidro a serem despejados. Hoje é quarta feira. Dia dos contentores do vidro. A janela está ligeiramente aberta e o cortinado branco, fininho, esvoaça um pouco. Agrada-me o ambiente, por isso fico um momento a absorvê-lo, ignorando o ruído. A seguir, respiro fundo e pego no livro da Ana Cássia Rebelo que está há vários dias em cima da mesa de apoio (pronto para receber a atenção que lhe quero dar). Releio algumas páginas que escreveu em 2007. O que será feito dela?