a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

30/10/2013

Pensar

Chamava-se Song Yonglun, o meu amigo chinês. Era professor catedrático na Universidade Tecnológica do Sul da China e veio a Lisboa por alguns meses fazer um trabalho de investigação. Por acasos felizes da vida, calhou ficarmos, ele e eu, na mesma sala.

Tinha as pálpebras superiores a cair suavemente e quase sem curvatura por cima dos olhos escuros, um pouco tristes.

Se conversava no corredor com alguém, juntava os pés e as mãos, braços caídos mas não abandonados, baixava ligeiramente a cabeça enquanto ouvia e depois ficava a pensar um pouco antes de falar.

Nessa altura, para falar, levantava a cabeça olhando de frente o seu interlocutor e mantendo a postura corporal. Ele era humildade, inteligência e sabedoria. Paz e tranquilidade.

Eu, que saltitava de crescer em crescer ainda na casa dos vinte e cheia de inseguranças, dúvidas e certezas, mistura explosiva, parava o relógio do tempo para o ouvir.

De cada vez que saía da sala onde trabalhávamos, ele fazia-o a caminhar para trás, para que não me virasse as costas. Na minha existência imberbe de então, se da primeira vez achei aquilo esquisito, logo me enchi de respeito.

Se nos via, a mim e aos outros colegas do corredor, a rir com as diferenças que ele trazia, baixava os olhos e sorria na espera sem impaciência. Nós haveríamos de crescer.

Vivia no campus universitário da sua universidade, numa das melhores casas atribuídas aos professores da cátedra. Tinha cerca de vinte metros quadrados e partilhava-a com a família, ao todo quatro pessoas. Nunca tinha tido um domingo livre para ir ao parque com a sua única filha, de cinco anos, e assim cumprir o sonho da sua mulher. Trabalhava sete dias por semana até muito tarde.

Parecia saber sempre como reagir aos conflitos que outros criavam.

Um dia perguntei-lhe para que era eu calhada, o que achava ele? Ouviu a minha pergunta, foi pensar. No dia seguinte deu-me a resposta: editora de livros, eu devia ter uma editora de livros.

O meu amigo Song Yonglun voltou para a China em agosto de mil novecentos e noventa e cinco.

Eu, animada da sabedoria que dele tomei, com profundidades essenciais sobre a existência humana e a dar os primeiros passos na arrumação de prioridades, escrevia-lhe. Por vezes enviava-lhe um facsimile, por ser tão imediata a comunicação. Ele nunca respondia.

E eu insistia, insistia, deve ser da distância, das linhas, insistia.

Um dia respondeu. Pediu-me para não comunicar com ele porque lhe causava problemas na Universidade, não tinha autorização para receber as minhas missivas. Não era suposto ele ter feito amizades em Lisboa.

Nunca mais lhe escrevi e nunca mais o vi.

Não sei se agora vive menos preso nas amarras da sua cultura ou se isso não lhe importa porque a sua alma é livre.

O que sei que sei é que ele continua a dar-se tempo para pensar.

29/10/2013

Barriga do peixe

Há muito tempo que não te escrevo.

Ainda tenho as palavras sujas e custa-me mandar-tas assim.

Aqui os dias já se estão a vestir de cinzento e as lágrimas do céu começaram a cair e molharam tudo. Mas eu não me importo.

A roupa lavada que estendo para secar enquanto penso em ti, não seca, mas descobri que se a lavar a sessenta graus fica com menos mau cheiro, é o que agora faço.

Este mau cheiro, este, que se veio colar às minhas palavras maculadas, desculpa.

O correr dos dias aqui é constante, a monotonia só a quebro porque oiço música diferente a cada hora. De resto é o que sabes, não te conto nada de novo, não lavei as palavras.

É o trabalho, a ilusão de prosperidade, a hora da saída, o anoitecer, o supermercado quase sempre, as limpezas domésticas às vezes.

Esforço-me, tu sabes disso. O detergente da máquina da loiça acabou, mas na loja só havia pastilhas de lavagem completas, daquelas que eu não uso, cinco em um ou coisa assim. Mas trouxe-as, são boas, modificam-me os dias e têm três cores.

Vês como as minhas palavras não prestam?

Encontrei uma maçã velha no fundo da cesta da fruta e descasquei-a a pensar em ti, porque penso em ti o tempo todo, estava tão seca, deitei-a fora.

E enquanto estendo estas palavras moles, pegajosas, mofentas, e as estico, as tento endireitar para ti, ordenar, arrumar em caixas com laços azuis e lilases, oiço uma voz chorosa que vem de outro apartamento. É a vizinha que não sai à rua há meses, que vê televisão e que ouve as histórias de amor com mentiras. Mas amor com mentiras não é amor.

O ar está a arrefecer e em breve vou ter frio de noite por causa do vazio que deixaste ficar. É por isso que calço as meias grossas que te fazem rir, são coloridas ao menos.

Já chegou a foto que me mandaste pelo correio. Colo-a aqui no fim das minhas palavras ímpias que não as pude sagrar. Gosto do azul que ostenta e da agonia que me firma na alma porque me mostra quão longe estás, me autoriza a dor e me rega as lágrimas. Aqui os homens ainda usam calças.

Queria enviar-te chá de tomilho, a erva que meto na barriga do peixe antes de ir ao forno, mas tu não gostas de chá.

Daqui a dias, quando chegares, mostro-te como o meu sorriso voltou.

28/10/2013

O elefante

Tinha quatro anos de idade e era o dia em que a minha mãe me ia levar ao jardim zoológico.

Seguíamos no seu Fiat 127 cuja matrícula ainda sei e que muito mais tarde foi roubado do parque de estacionamento de Algés. Nunca mais voltou.

Cá vamos, então, no Fiat, Campo Grande fora. O primeiro destino é a casa da amiga da minha mãe cujo nome esqueci (memorizar matrículas é que eu faço bem) e que tem uma filha da minha idade.

Ora neste feliz dia vamos todas, as quatro, visitar o jardim dos animais, local mágico, aonde eu estalo de vontade de ir, mas que hoje me amedronta porque, mãe, disseste que vamos andar no elefante, disseste? E se ele não quer?

- Quer, filha. Mas antes de chegarmos a casa da Ana (acabo de a baptizar, Ana serve muito bem), tira a pastilha elástica da boca, para não ires a mascar, que é muito feio.

Obediente, que a minha mãe é que manda, tiro a pastilha da boca e, como não vi, dentro do carro, depósito apropriado, fica a pastilha encolhida na minha mão esquerda, fechada, só até sair e encontrar um caixote do lixo. E entretanto pensava no elefante, ele é tão grande, será que vou cair?

Chegamos à porta da Ana, mas não houve tempo de sair e procurar o desejado caixote, a pastilha fica aqui mais um bocado, muito sossegadinha na minha mão e já deve ter adormecido, porque me parece que está espalmada.

Entra a Ana no carro e então, efusivamente, olá Susana, que crescida, dá cá um beijinho, e tal, aquelas coisas que me enervam, principalmente com isto na mão, se tivesse demorado mais um bocadinho, eu tinha saído e procurado o lixo, e o medo do elefante, crescida eu?

A outra miúda instalou-se a meu lado, também não é nada crescida, tem é cá uns olhos curiosos, espero que não saiba do que tenho escondido na mão. Olá, disse-lhe eu.

Dali ao jardim dos elefantes foi um salto e, finalmente, estou fora do carro.

Entramos nos portões de Sete Rios e avisto o desejado cilindro esverdeado-sujo, feito em rede metálica, salvo erro, a olhar para mim. Detenho-me junto dele e disfarçadamente abro a mão mesmo por cima do círculo aberto ao céu, que alívio vai ser, deixar o rejeitado pedaço de goma mascada cair lá para dentro.

Mas ela não cai. Que coisa, a pastilha espreguiçou-se e agora não sai, está agarrada, colada à minha mão, acinzentada e suja, ai, como se faz para deitar isto fora, tenho que raspar, mas se calhar cola-se à outra mão, é melhor não mexer.

- Anda lá Susana, anda!

Fecho a mão e corro para as apanhar não vá verem esta porcaria, que vergonha. Não posso dizer nada, não quero deixar a minha mãe ficar mal perante a amiga e a outra petiza que é muito curiosa, já sabemos que pastilhas é feio. Agarro com a minha mão direita a mão da minha mãe, porto seguro, talvez daqui ela me consiga ouvir o segredo se eu lho contar baixinho, mas não pode ser, a miúda não se afasta, vai ouvir tudo.

- Vamos andar de elefante? - pergunta ela, ansiosa.

Resposta positiva, entusiasmada, das mães em uníssono. Vem a miúda a correr pôr-se ao meu lado e tenta agarrar na minha mão esquerda para sermos duas crianças felizes a saltitar em vez de uma criança feliz a saltitar e uma criança infeliz agarrada à mãe, com um problema na mão e medo do elefante.

- Esta mão não se pode abrir - digo eu.
- Ai não? Porquê?
- Porque tem um segredo.

Ah, um segredo na mão. A outra menina parou de saltitar e caminha agora ao meu lado, a curiosidade ainda lá está, a avaliar pelos olhares de soslaio que me deita à mão, mas a admiração é mais evidente. Um segredo na mão!

- Ó mãe, eu também sou crescida, não sou? - oiço-a dizer, enquanto me concentro a pensar que desculpa arranjo para não subir ao elefante com uma mão a menos para me segurar.
- Claro que sim, querida.
- E as crescidas podem ter segredos, não podem?
- Hum? Podem...

Depois, olhos no chão, voz fininha, desanimada, confessa:

- É que eu também tenho um segredo... tenho medo de andar no elefante.

23/10/2013

Fada de espuma

Lembro-me muito bem do teu sótão.

Palco das histórias mágicas que me contavas, com fadas e princesas, o teu sótão foi o ninho onde nasceram os meus sonhos.

O soalho era feito de tábuas muito compridas entre as quais desapareciam os alfinetes que te caíam dos dedos quando experimentavas em mim os vestidos de verão que se faziam com as tuas mãos de anjo. Está quieta, dizias.

Eu queria os vestidos compridos até aos pés e tu dizias que não, isso não. Mas, depois da prova, eu ia ao cesto dos restos de tecido e escolhia um bem grande. Enrolava-o à cintura e pedia-te os alfinetes, prende aqui, prendes? Prendias. E deixavas-me ser a princesa das tuas histórias.

Lembro-me de te sentares à janela, aberta para os telhados de Lisboa. Recortava com a tesoura, devagar e desajeitadamente, os restos dos panos que sobravam das tuas costuras, para eu fazer as minhas. E, ao mesmo tempo, observava os pássaros que esvoaçavam perto de nós.

- Se eu cair da janela e escorregar no telhado, tu vais buscar-me?
- Não, querida, os pássaros apanham-te e trazem-te para casa.

E cantavas outra vez aquela canção que eu te pedia, a da fada de espuma, vá lá, só mais uma.


Muito tempo mais tarde, no dia em que morreste, perguntaste-me, admirada, porque gosto tanto de ti.

Não sabias que os teus panos e os teus alfinetes, as tuas histórias e cantigas, teceram para sempre o manto de protecção que ficou a pairar sobre mim?

Lembro-me muito bem do teu sótão, avó.

Setenta e sete palavras

Hoje foi um dia bom.

A minha irmã Catarina escreveu um texto com setenta e sete palavras e foi lida hoje na rádio pela escritora que lança o desafio. Mais nada!

21/10/2013

Roménia

O voo da TAP vinha a abarrotar, é o overbooking, disseram.

A confusão, amiga do overbooking, também veio. A bagagem de mão não cabe nas bagageiras do costume, as hospedeiras esforçam-se por enfiar sacos e mochilas nos (lá vamos nós outra vez, que palavra linda) interstícios entre os bancos e tal, e a coisa, após discussão, olhe aqui, veja ali, gente nervosa, queixas e suspiros, lá vai. Elas, as hospedeiras, mantêm o seu sorriso maquilhado sem perturbação, que é factor admirável. E resolvem tudo.

Já eu estou sentada no meu lugar, a encetar a leitura de viagem, quando sou abordada por uma passageira que, vítima do overbooking, calhou num lugar ao meu lado mas longe do seu companheiro. Pergunta-me se viajo sozinha. Sim, viajo sozinha. Então não se importa de trocar, é que nós queremos estar juntos e ele, apontou para o companheiro que vinha a evoluir pelo corredor, a custo, espremido entre malas que ainda não tinham entrado nas bagageiras já cheias e braços levantados a empurrá-las, a empurrá-las, lá vinha ele, a sorrir solicitante, para complementar o pedido, e ele, dizia, ele ficou num lugar la à frente.

Acedi, claro, não perco uma oportunidade de ajudar a tornar o mundo (meu ou dos outros, o mundo é o mesmo) um bocadinho melhor. Fecho o meu livro, pego nas minhas coisas e levanto-me.

Mas antes de iniciar caminhada contra a corrente e dirigir-me ao meu novo lugar, lá à frente, mesmo na fila um, fui obrigada a ir ao fim do avião até todos estarem instalados, e só depois, finalmente, percorrer o seu comprimento até me poder sentar.

Sento-me. Ao meu lado, dois compinchas da música conversam.

Passa a oferta de revistas, é a Visão, é a Sábado, aceito a primeira, sempre compensa a falta de serviço de refeição que acabam de anunciar, agora na TAP é assim, há gente a menos e por isso não há serviço, a malta fica com fome se não se previne. Eu não me tinha prevenido. Aceitei a revista, pronto, para ler em vez de jantar.

Os meus vizinhos de assento conversaram toda a viagem, toda, sem uma pausa. Admirei-lhes a abundância de tema, estive a um passo de os cumprimentar por isso. Mas não o fiz.

Em vez disso apurei os ouvidos para lhes roubar a ciência que trocavam, e mesmo na baixa pressão da cabine, em que o som se propaga com mais custo, apanhei esta tirada, que para mim é novidade.

Na Roménia uma música tem que ter no máximo três minutos e dez, três minutos e quinze, máximo, e nos primeiros trinta segundos tem de rebentar, senão já não dá. Mercado totalmente permeável à música dos meus companheiros, segundo eles. Bom presságio para o futuro que traçavam.

Faltou neste voo ordem na arrumação das malas, faltou um tripulante e faltou o serviço de refeição e de vendas a bordo (serviço totalmente inútil, podia faltar sempre), mas a estes dois amigos não faltou conversa. Nem conversa, nem entusiasmo que é coisa que nem sempre se regista assim, com esta facilidade e só porque mudei de lugar.

A propósito, isto do overbooking faz-me pensar. Onde andará a crise?

Será que foi meter o nariz na Roménia e ditar-lhes o formato temporal das músicas?

18/10/2013

Tampões de esponja cor-de-laranja

Uma das t-shirts de uma das minhas filhas exibe a inscrição "sweetness of nature" em letras brancas abertas em rectângulos pretos num fundo, de novo, branco. E foi hoje o dia em que os meus olhos pousaram nela, nesta hora de quietude no lar em que apenas resto eu de vigília. A t-shirt está pendurada nas costas de uma cadeira à espera de apanhar boleia para a gaveta a que pertence.

Eu ignorava até este momento que a minha filha informa o mundo, que com ela tem o privilégio de se cruzar, de uma verdade tão cristalina e tão pura.

Em primeiro lugar, não quero escrever um post comprido, para não fazer diminuir ainda mais o número de visitas a este blogue outonal.

Em primeiro lugar também (que vem apenas um nano segundo depois do parágrafo anterior e não um segundo inteiro), sinto-me uma má mãe por só agora ter visto o que está escrito numa camisola da minha doce filha, quando aquela já está a entrar na idade puída das camisolas.

Em segundo lugar, sinto-me uma má mãe porque nem sequer sei a qual das doçuras da natureza que eu pus no mundo esta peça de roupa idosa pertence.

Em terceiro lugar e com vista a manter o post curto e apetitoso de ler, se é que ainda vou a tempo, acabo de perceber porque dizem as minhas filhas a propósito de uma outra mãe que essa é que é uma mulher a sério. É que vai aos saldos, é que faz compras com as filhas (dela), é que sabe escolher.

Em quarto lugar e último (mantenho o intento da curteza do texto), há que esclarecer então, justiça seja feita, que a tal outra mãe, que já sabemos que é uma mulher a sério, não se importa com a música de levar-com-tábuas-na-cabeça que as lojas de roupa para jovens insistem em passar em altos berros. E por isso deve conhecer as mensagens das t-shirts das filhas.

Este parágrafo é extra, que depois do último não deve vir mais nada, mas há que fechar a história: eu, mulher a sério mas mãe incompleta, declaro que vou fazer uso dos tampões de esponja cor-de-laranja que me deram num voo de longo curso e vou acompanhar as minhas doçuras da natureza na próxima visita às lojas, vou vou. De tampões de esponja cor-de-laranja nos ouvidos e de sorriso na cara.

16/10/2013

Muita satisfação

Acabo de descobrir que chá de gengibre com hortelã fresca é quase tão bom como ficar na cama ao sábado de manhã a sorrir de olhos fechados, que não é dia de trabalho.

Por isso, agora é isto: chego a casa, tiro os sapatos e o casaco, ponho uma coisa de borracha nos pés que me assenta muito bem o andar, visto outro casaco, um que comprei há doze anos quando ainda era branco, numa loja de desporto, e antes de desatar a gritar às miúdas que arrumem os livros da escola, os ténis espalhados pelo chão, a manta do sofá que ganha vida própria quando elas estão em casa mas nunca foi uma, sempre a outra, antes disto tudo, deito água na chaleira nova e carrego no botão.

Enquanto oiço o apito rouco que a electricidade faz ao manobrar poderosamente a energia, enfiando-a dentro da molécula de dois hidrogénios com um oxigénio, enquanto isso, corto fatias finas de gengibre que trouxe do supermercado e penso: o gengibre é como eu. Feio por fora, bom por dentro.

Depois, quando a água atinge o ponto de mudança de estado e a chaleira sabichona da tecnologia faz saltar o botão que eu antes accionei, deito um pezinho ou dois de hortelã dentro da panela do chá (panela fica bem mas é bule, é bule), a água fervente por cima e deixo-me levar pelo aroma.

A seguir esqueço-me de gritar tudo o que declarei que grito às minhas filhas, preparo o jantar e bebo o chá de gengibre com hortelã como se não houvesse amanhã. Esta expressão corriqueira agrada-me bestialmente e por isso hoje a posto aqui com muita satisfação.

E agora que mudei o teor dos meus posts para receitas caseiras, vou tratar da pilha de roupa que está por passar. Como se não houvesse amanhã.

09/10/2013

Televisão com fibra

                                                             Armanda Passos

- Mas porquê? Porque gostas do quadro? - quis ele saber.

- Sei lá, gosto. Gosto muito. É a cor e os pés, grandes. Os vestidos também, claro. Gosto muito. - disse eu.

Mas não disse tudo, nunca digo. Um quadro e eu, em gostando um do outro, temos segredos.

E deste gosto porque aquela mulher sou eu.

Sou a camponesa livre que galga o terreno com uns pés grandes, consistentes, e que não tem medo.

Sou esta mulher que vai à terra deitar-lhe as sementes que traz na dobra do avental colorido e regressa a casa com a certeza da colheita.

Sou a mulher que sabe esperar pela primavera e que, enquanto o inverno corre, coze o pão e recolhe a lenha, para acender o fogo que nunca lhe falta e enche a casa, que é o seu lar, de aromas quentes, inesquecíveis.

Sou a que conhece a chuva que vai cair amanhã e o cantar do vento que ainda não parou.

Sou a que leva o cântaro e o enche na fonte de água cristalina e fresca, só para a ouvir. E pelo caminho conta a história da velha que não sabia ler nem escrever à criança que imagina levar pela mão.

Sou a que, com assobios desafinados, imita os pássaros e com eles fala.

Aquela mulher sou eu. Sou a da direita e também a da esquerda. Sou as duas, que a solidão não me conhece.

É que naquela terra, em que semeando dá em colhendo, não houve lembrança de criar padrões de beleza. E eu, em segredo, sem medo, podia ser feia.


- Sim, gosto muito. Da cor, dos pés grandes e dos vestidos - repito, enquanto oiço o cão do andar de cima ladrar porque o vendedor dos quatrocentos e oitenta e nove canais de televisão com fibra tocou a todas as campainhas do prédio.

02/10/2013

Pintado de fresco

Não vou contar isto em tom de queixa, prometo.

O trabalho hoje foi a rasgar pano, tinha de terminar o apanhado de um fenómeno que nos caiu na sopa para engolirmos quer gostemos ou não, lá na empresa. E foi mesmo a cem à hora e não sem hora, porque às dezoito e quinze havia a reunião na escola da outra filha.

Desta vez tenho de agradecer aos anjos o ter participado finalmente numa reunião de pais em que todos, mas todos, pais, mães e uma irmã, disseram coisas pertinentes, interessantes, interessados, e educadamente! Todos! E - cereja no topo - a mostrar o amor pelos educandos, coisa que nem sempre está patente.

Saí da reunião com a bexiga a reclamar a hora do alívio, aguenta aí só mais um bocadinho, está quase.

Ainda precisava de comprar o jantar e mais umas coisas imprescindíveis para sexta feira e como amanhã é dia de ginásio e ontem também foi, só sobrou hoje.

Estacionei à porta do supermercado às dezanove e cinquenta e voltei a entrar no carro com os sacos cheios (e a bexiga também, não esquecer) às vinte horas e catorze minutos. Sorri no escuro do habitáculo, satisfeita com a eficiência da operação.

Até casa eram só mais umas poucas centenas de metros, onde me esperavam as minhas filhas, uma delas a estalar de curiosidade para saber como foi a reunião, mãe?

Pressionei o botão do lado esquerdo do comando do portão da garagem (o botão do lado direito está lá, mas não tem serventia) e assim que o espaço na vertical permitiu passar o meu automóvel e mais um milimetrozinho para a margem, lancei-me rampa abaixo entusiasmada com a chegada a casa. Mas na curva, bolas, na curva do Seat que está lá a coleccionar pó às camadas, ouvi um som de rrrrrrrrrr que não me deixou nem o tal milímetro de margem para dúvidas.

Boa. Raspei o carro do vizinho do oitavo andar.

Estacionei no meu lugar, irritada com o aperto da garagem, a posição dos outros carros, a dos planetas e também com a natureza, que me encheu a bexiga desta maneira, logo na altura em que mais precisava de não raspar carro nenhum. Escusado será referir que a satisfação que trazia da operação-supermercado-fulminante sumiu-se por causa do Seat da curva da garagem.

Saí do carro, do meu, e dei a volta a ver o estrago. Nada, com o dedo retirei as vinte e três camadas de pó sobrepostas numa linha de cor indefinida que roubei ao Seat. Voltei a ver a cor preta do meu carro, em todo o seu esplendor.

Carregada com os sacos para não ter de voltar atrás, já se sabe as urgências que trazia, dirigi-me à curva onde está o Seat, que fica a caminho do elevador, e observei a zona da linha de pó que lhe fiz o favor de limpar. Estava lá. E estava também o risco preto, pintado de fresco por mim.

Mas eis que foco melhor a visão, pouso os sacos pesados, e verifico que a minha marca tem companhia.

Havia lá outras, assinaturas de todas as cores, branco, vermelho e uma de um azul pálido que conheço vagamente da mesma garagem.

De volta à sensação de não estar só no mundo, e já em casa, escrevi ao vizinho do oitavo andar a dar-lhe conta de que também eu lhe assinei o carro. De preto, vizinho, acho que ficou bonito.

De certeza que ele vai ficar contente. Eu já estou.

É que, entretanto, passei pela casa-de-banho.

Via rápida

Todas as manhãs te levava à escola, de carro. Ias no banco redutor, adaptado ao teu tamanho de criança, no assento de trás. Habitualmente viajávamos em silêncio, a hora matinal não se presta a muita conversa.

A seguir à rotunda da estação de serviço, entrávamos no acesso que mete para a via rápida, à nossa esquerda. Rápida mas só de nome, àquela hora. O tráfego era denso. Lento, compacto, seguia impaciente. A manobra exigia-me uma boa dose de perícia ou a concessão de um dos outros condutores, a deixar-nos entrar. Acto contínuo, a minha mão direita ergue-se em agradecimento.

Num dia de tráfego mais fluido, a espaços, não levantei a mão ao entrar na via rápida.

- Não agradeces, mãe?
- Ninguém me deixou passar, filha, fui eu que entrei.
- Mas é melhor agradeceres. Se calhar a pessoa que vem atrás de nós queria deixar-te entrar.


Hoje o banco de trás do meu carro vai vazio, tu cresceste. Andas noutra escola e já vais sozinha.

Talvez agora te risses, se me pudesses ver. Todas as manhãs, ao entrar na via rápida, a minha mão aberta ergue-se, incondicionalmente.

Ficou-lhe o teu pedido na memória.

E naquele ponto da estrada, para sempre ligado a ti, abre-se-me este sorriso que vem da tua infância.