a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

28/01/2022

Coisas que não aconteciam se não fosse a covid dezanove

Entro com o pé direito no pequeno laboratório onde vou fazer o testezinho covid para poder regressar a Portugal, ajeito a máscara para desenfiar os pelinhos de papel que se metem no meu nariz aspirante de ares mascarados, encharco as mãos no gel oferecido à entrada e digo bom dia em holandês. Já conheço este laboratório, tem dois funcionários, embora diferentes dos das outras vezes, um na receção e outro na colheita da amostra. Dirijo-me à receção. Entrego o meu cartão de cidadão e mostro o código quê erre da marcação do teste no ecrã do telefone. A mocinha da receção, verificando os dados pessoais no meu português cartão de identificação, exclama isto: Ah! Faz anos no dia sete de setembro! Eu: Faço. Ela: Eu também! Oh, mas que coisa tão gira, digo eu, e rara, penso. 

A mocinha entrega-me duas etiquetas que me diz destinarem-se ao seu colega, e manda-me entrar. Não está mais ninguém no pequeno laboratório. O técnico da colheita recebe-me cordialmente e aponta-me a cadeira, todo a cumprir o procedimento. Eu entrego-lhe as etiquetas e sento-me. O técnico aprecia-as, cola-as nos devidos lugares enquanto lhes lê o conteúdo com os meus dados e diz: Ah! Faz anos no dia sete de setembro?? Eu: Pois faço.... Ele: Eu também!

Mau. Isto já é probabilidade de menos. Então explico-lhe que a sua colega me disse exatamente isso... Ele estica o pescoço e grita para a colega a pergunta que a mim fez sem gritar. Como eu esperava, ela confirma. Somos, portanto, três, as únicas pessoas neste pequeno lugar todas nascidas no mesmo dia que não no mesmo ano, como (vai rimar) se podia perfeitamente verificar com um simples olhar. Também era melhor.

(Adenda histriónica: a probabilidade de isto que me aconteceu acontecer é, segundo os meus cálculos não renais, cerca de 0,00075%. Vai buscar.)

20/01/2022

De pouco me vale não ter facebook e coiso, o castigo é certo

O computador à parede não atirei ainda, como fez a minha cliente, mas suponho já ter estado mais longe. É uma questão de definir se vai o próprio, o teclado acessório ou o segundo ecrã. Isto porque o telemóvel já foi, embora não à parede. Estúpida coisinha dentro da qual somos obrigados a viver SE QUEREMOS MARCAR A MERDA DE UMA CONSULTA para a qual é preciso criar nome de utilizador, palavra passe com requisitos de proteção para juntar às quinhentas mil palavras passe que já nos obrigaram a criar e que depois esquecemos e por isso temos de substituir por novas palavras passe que vamos também esquecer, instalar uma app no telemóvel porque uma equipa permanente a pensar em si o tanas e o raio que os parta, no computador não dá, aliás não dá em lado nenhum! Foi por isto que o computador se safou de ir parar ao chão, mas não o telefone. Não se partiu, a capa é boa. Apenas saltaram os cartões lá metidos incluindo os papelinhos com os dados da minha rica vacina covid. Apanhei-os. Gostava de saber, já que aqui estamos, para quando apanharmos também as vacinas através de apps no telemóvel. A mim quem mas deu, a todas três doses, foram pessoas, duas mulheres e um homem. Pareciam verdadeiros. Ou seja, de carne e osso. E falavam! Falaram comigo, a sério que falaram. Até me olharam nos olhos! Um luxo tão grande, tão grande. Enorme.

17/01/2022

Quem descobrir o que é Sêugutrop ganha

Enquanto esperava pelas onze e quatro, hora patente no pequeno retângulo de papel que ditava a minha autorização de saída do recobro da vacina, li dois contos da Luísa Costa Gomes*. O “Hades” e o “Elegancil”. Que duas maravilhas. O “Hades” preferi ainda mais! Contei-lhe as páginas e são seis. Fotografei uma a uma e mandei para a minha irmã que gosta de palavras, a ver se ela lhe pega e, pegando, se gosta. Eu aposto que sim, uma vez que “Hades” é “Hás-de” em Sêugutrop.

*"Contos outra vez", edição da Cotovia. Tem na contracapa uma etiqueta da FNAC de setembro de 1998, de certeza alguém me ofereceu o livro pelo aniversário e, ao contrário do que é costume, não faço ideia quem foi. Que pena.

16/01/2022

Benditas feromonas

Quando, já a tarde se punha esmorecida, levei com a rua na cara à saída do prédio para ir comprar sumos e sobremesa para o jantar com uma das minhas irmãs e correspondentes miúdos, senti-me feliz. É esquisito mas que foi, foi.

Comprei dois sumos, um pacote com chocolates miniatura para o café e milho para a salada. Não vou pôr tomate, hoje não gosto de tomate. Normalmente em janeiro é assim. Lá para maio tornarei a gostar. Hesitei quanto ao queijo branco mas deixei-o ficar descansado. Havia tantas marcas diferentes, e formatos, que me cansei de tentar tomar a decisão por isso não a tomei. Ando assim a meio gás há tempos, daí achar tão estranho o pico de felicidade. Pensando melhor, hoje dormi muito bem, fiz a caminhada toda e comprei o tabuleiro de segurança. Andava há séculos à procura dele, um tabuleiro um bocado bonito para dispor em cima da cómoda com as caixas de cerâmica dentro, em arranjo de rebordos subidos à prova de patinhas felinas deslizadoras-de-objetos-e-deitadoras-dos-mesmos-ao-chão durante a noite. Creio que assim as caixas podem voltar a sair da gaveta onde têm passado mal a pandemia. Portanto, vendo bem as coisas, e entretanto também as caixas, até que não estranho a felicidade que me caiu em cima. Mais: montei as rodas todas, quatro de cada lado, no cesto inferior da lavavajillas, se quisermos uma palavra lindíssima, se não, temos sempre a composição máquina-da-louça, e ele corre sobre rodas. Novas. Está tão bom o cesto. Afinal, tenho imensas razões para a felicidade chegar cá.

(mais: as benditas feromonas parece que estão mesmo a resultar, caramba - quase choro de alegria)

15/01/2022

Spray emergência

Logo após se ter partido a segunda roda do cesto da máquina da loiça e juntando um ou dois suspiros para ganhar ânimo, entrei no google com pouca fé. Escrevi as palavras melhores para a essência da minha precisão. Cestos, máquina, lavar, louça - e não loiça, louça soa mais sério, ó, louça. E a marca. Saiu logo a resposta a valer mais do que a fé propunha. O cesto, na cor, na forma, nas rodas intactas, ali todo na imagem, ao contrário do que tenho em casa, rodas estafadas, duas partidas, como já sabemos, as restantes ameaçando. Isto num eletrodoméstico ainda com futuro brilhante, especialmente por dentro. E com sal comprado também especialmente. Considerando que o meu primeiro pensamento, ainda antes do natal, havia sido “ai que vou ter de comprar uma nova máquina”, estava aqui já a sentir-me com sorte, ganhando pontos, perante a possibilidade de um cesto novo, apenas isso e não toda a máquina, quando, senhores!, outros frutos ainda mais doces se me atravessam ao olhar: no ecrã a imagem de um conjunto de rodas, só elas, todas oito, para substituir no meu próprio cesto. Encomendei, claro. Depois guardei os suspiros no bolso com muito cuidado, pôxa, esta valeu.

Enquanto escrevo isto, dois gatos correm doidos por aqui, a bufar e a rosnar, o dia começou agreste. Ontem tinha sido lindamente, as feromonas do difusor mais as do spray emergência a fazer o bonito, a paz. Tão bom foi o dia que até escrevi ao Dr. dos Gatos, muito contente, a agradecer as dicas das hormonas. Por isso é que estou desanimada, poças, esta agora valeu não.

07/01/2022

As coisas por que passamos por um café

São dezassete e vinte e dois e já anoiteceu. Comendo a maçã que divido com Erik, assomo à janela da cozinha e vejo que na casa vizinha do lado poente, Meicke não está sozinha. Um dos seus filhos está de visita. É aquele que, segundo Erik, vem muitas vezes jantar com ela, aquele que é portador de uma leve deficiência. Ele está sentado, consigo ver daqui, a uma mesa junto à qual um dia, à hora do café, caí de rabo no chão. Foi lindo. Meicke tinha-nos convidado para esse tal café no âmbito da boa convivência com vizinhos em vigor em todo este lado da rua e, quando me vou sentar na cadeira que ela puxa para mim, solícita, pum. Ora eu não havia tirado e portanto ainda envergava, mania dos frios, o velho casaco comprido e grosso, castanho, com o qual havia percorrido a meia dúzia de metros que separam as nossas casas. A cadeira ali disponibilizada para mim animou-se então de um movimento de translação orientado a poente, impulsionada pela minha ampla abordagem na tentativa de nela encaixar o meu aumentado traseiro (lembro o casaco castanho, atenção, comprido e grosso, aliás, muito grosso). A cadeira não se encontrando apta à tarefa de encaixe da minha pessoa na forma de sentada e pronta a tomar o querido café, deixou-se, como dito, deslizar para longe. E eu? Isso: caí no chão com o referido traseiro desamparado, como já disse três vezes. Era aquela uma cadeira com rodas, a saber. Ágil, portanto, leve, silenciosa e pronta a deslizar. Não uma cadeira de rodas, tomar nota, mas uma cadeira com rodas. É diferente. Levantei-me imediatamente, sacudi a pouca vergonha, endireitei o grosso do casaco e encetei uma segunda tentativa agarrando a safada pelos braços de modo avisado e sem margem para erro. Sim, sim.

03/01/2022

Espirros são como as cerejas pelo menos para mim

Com certeza mais vale limpar uma sujidadezita que secou no ecrã do telefone. Não tinha saudades das insónias, caso perguntassem. Os novos vizinhos da casa da frente esquerda, vendida no ano recém transato, têm uma árvore de natal que se vê da rua com luzinhas azuis, verdes e vermelhas. Não prefiro; as de luzinhas amarelo-torrado é que são quentinhas. Consegui dois dias inteiros sem trabalhar, o ano começa disciplinado e amigo. Está escuro lá fora, as silhuetas das árvores não têm folhas e não oscilam ao vento ausente, está toda a gente a dormir. As vacas do Verão recolheram ao estábulo há muito, mas não tem estado frio algum. Mudei as anotações correspondentes a dois mil e vinte e dois para a nova agenda. Todos os anos tenho medo de já não haver agendas físicas à venda, pois delas cada vez há menos. Não quero estragar ainda mais os olhos esborrachando-os desta maneira com ecrãs. Entediam-me conversas sobre o Facebook e receitas de cozinha, caso tenha interesse. Suspeito que há quem se tenha mudado para dentro desses lugares. Há poemas que parecem slogans publicitários e por isso estarão sobreclassificados, isto digo eu, evidentemente. Que simplesmente adoro a Adília Lopes e o João Luís Barreto Guimarães, a Cláudia R. Sampaio e a Filipa Leal também digo, e há mais. Especialmente aqueles poemas que se inserem na categoria temática amor-mastigado. Só gosto de poemas que ou me fazem companhia ou me divertem. Cada vez me é mais difícil gostar de um filme, mas gostei da série portuguesa da Netflix, in-crí-vel. A palavra incrível toma-se melhor às prestações, está estafadíssima. Como fantástico. Fan-tás-ti-co, não como? Felizmente há os livros, abençoados, abençoados. Mas agora o melhor talvez fosse a loucura de ir dormir. Saúde!