a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

25/10/2023

Então bom dia

Através da frincha da janela, chega o canto de dois ou três melros. Lá fora, o asfalto da estrada guardada pelo arvoredo onde as aves despertam, está molhado. Não preciso de o ver. Os primeiros habitantes do bairro já saíram de casa para dentro da noite, que ainda dorme, e as suas viaturas rodam sobre a chuva caída.
Mais ao longe, um cão ladra um bocadinho. É mesmo só um bocadinho que ele ladra, por exemplo, não é muito: as coisas são como são. 
Entretanto um autocarro passa vagaroso. 

Ser assim, toda arrancada à cama por uma cólica inesperada e metidinha, tem algumas vantagens. Como aliás quase tudo aquilo que vem e depois vai. 
Então troquei o café por chá e também arranquei mas foi o dia na cozinha.

12/10/2023

Mas bom dia

Lisboa ajustava-se finalmente com força moderada sobre a placa tectónica num tremor de terra da escala de cinquenta euros. Meti-me debaixo de uma mesa do laboratório de ensaios enquanto em redor caíam algumas coisas indistintas. Procurei o dinheiro nos bolsos e sobrevivi mesmo antes de acordar. Lá fora ainda estava escuro. Alcancei os óculos e desci as escadas, liguei o computador. Preparei um café forte e, enquanto a máquina processava a operação com jorros de vapor a subir aos armários da cozinha, retomei o relatório prometido para o dia anterior.

De repente, lembrei-me do nome do autor do livro com o título na placa em azulejo da casa que está para venda. Casa do pó. Mas nunca li o livro e agora está esgotado. 

O telemóvel esperto faz-me cada vez mais infeliz. Apago noventa por cento da informação; já o mundo fora dele é completamente maior. 

Estou a ponderar comprar os livros todos do João Aguiar e ir outra vez ver os Fatias de Cá. Não sei onde ando com esta cabeça.