a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

13/05/2023

Ou a ideia é transformar quem leia qualquer coisinha futura em atrasadinhos totais?

A cada notícia a urgência intensifica-se. Há que comprar o maior número possível de livros o quanto antes. Livros que ainda trazem os adjetivos inteiros, as possíveis ofensas, as cenas maradas, livros completos, autênticos. Não submetidos aos atuais critérios de censura, frutos de uma surpreendente ausência de cérebros capazes de pensar. Poucas coisas me entristecem tanto como a amputação dos livros que parece querer anunciar-se no horizonte.

Um bocadinho mais de inteligência, por favor. A sério, vá lá.



06/05/2023

Verde pistachio

De cabelo grisalho, ténis, meias e saia curta, a mulher sentada sozinha a uma mesa escrevia num caderno. À sua frente não se vê um jantar, apenas um copo de vinho tinto. A caneta com que escreve, de um verde pistachio, lembra a lapiseira de modelo famoso da Caran d'Ache. Esteve o tempo todo a escrever, só ficava suspensa, em pausa, quando o fadista cantava.
Tive muita curiosidade ali, toda a noite, na mesa ao lado, mas em vez de lhe fazer perguntas perturbando a sua escrita, fiquei somente a ouvir as intensas canções de Coimbra, todas tão bonitas.

Amena corçaqueira

Como queria pegar ao trabalho o mais cedo possível, fui caminhar ainda o relógio andava pelas seis e tal, quase sete. Já fora da aldeia, onde a manhã se encheria de quietude não fosse a primaveril sinfonia dos pássaros, num tímido ramal de terra e muita erva fresca a estender-se a partir do caminho principal na direção do vale, está uma corça macho de porte bastante jeitoso e galhardas hastes, ali toda a olhar para mim como se eu fosse um bicho. Parei a apreciar-lhe a beleza natural quase sem respirar, mas o bicho, ele sim, achou melhor dar meia volta e correr para dentro do bosque de eucaliptos o mais depressa possível, não fosse eu trazer algumas ideias maléficas. Talvez tenha ido chamar reforços, porque muitos minutos depois, quando eu já venho no regresso, estão três exemplares estacionados no meio do tal caminho principal, utilizado pelo carro do padeiro inclusive, ali como se em amena corçaqueira, que é a cavaqueira das corças. De novo parei para observar o espetáculo que me estava sendo dado pela segunda vez na mesma manhã e agora em triplicado, mas os atores optaram por abandonar o teatro das operações e correram outra vez o mais depressa possível para dentro do bosque de eucaliptos onde um ou outro carvalho ainda marca presença no meio da paisagem.

(benditos aqueles que, após os cervídeos terem sido extintos pelos caçadores no final do século passado, introduziram uma centena destes animais na serra da Lousã e agora são aos milhares e encantam-me muito - não sei a quem devo agradecer, mas gostava muito)

27/04/2023

O verso (sem meta por favor)

Hoje é noite de Maydays no canal National Geographic. Instalei-me toda no sofá para a sessão de aprendizagem, mas os episódios são repetidos (ainda bem). Volto-me então para este pequeno e levezinho blogue, ao contrário de mim. 
Não comi cebolas inteiras com casca, nem bebi a cerveja por uma palhinha azul de plástico. Não continuei a ouvir a entrevista à Susana Peralta depois de ela dizer um disparate do tamanho de um elefante montado numa girafa. Não fui para o trabalho a pé nem não fiz o exercício de sete minutos no quarto.
Não aprecio as declarações do que não se é. Pelo contrário.

25/04/2023

Feira popular

Acabei finalmente “Os irmãos Karamázov” de Dostoiévski, primeira parte. Falta a segunda, que é maiorzinha. Mas vai ficar para depois. “Os irmãos Karamázov” é uma obra muito muito à Dostoiévski, maravilhosa e densíssima. Algumas passagens de filosofia sobre a religião aborreceram-me imenso, mas não saltei nada. O problema é meu, uma vez que também tenho a minha dose de feira popular e anúncios de televisão. Peguei, entretanto, em mais um da Clara Pinto Correia, não sei quê dos caminhos. Os livros dela têm títulos ocos que nem eu memorizo com facilidade e capas muito feias, mas são tão bons.

22/04/2023

Pão sem manteiga

Quando, pouco passava das seis horas, o dispositivo retangular a que chamo telemóvel (senhores, arranjar nova designação) me caiu na cara dando-me o flanco lateral, nem a capinha transparente, flexível e algo amortecedora, comprada no chinês de Penela, me aliviou a dor no osso facial. Normalmente este género de quedas próprias das leituras matinais na caminha são muito menos acutilantes.

Mas acabei de ler o artigo do Expresso, li outros dois do Página Um (hoje o Tiago Franco desiludiu-me um bocado ali no remate final), e levantei-me. Pela janela via-se que a noite já tinha saído, mas o dia ainda estava a tentar emergir das nuvens. Vesti o grosso robe de chambre cor de fumo e fiz-me à escada. Na cozinha preparei um café de filtro e meio pãozinho de ontem. Torrei-o ligeiramente e meti-lhe dentro uma elegante fatia de queijo light. Manteiga nem pensar, evidentemente. Lá fora sei que está frio. Abro o trinco devagar, prolongando o estalido para não espantar algum veado que pudesse andar por ali a alimentar-se de erva fresca e saio para o terraço. O ar está carregado de humidade e as cadeiras ainda estão molhadas. Veados não se vê nenhum, devia ter vindo mais cedo. Passo os olhos pelo vale envolto em neblina onde os pássaros chilreiam à falta de primavera. A minha rica ideia de tomar ali o café da manhã desvaneceu-se para dentro. Torno a fechar a porta devagar. Ao subir a escada, noto que, agarrado ao vidro da janela alta, do lado de fora, está um grande caracol de antenas no ar seguindo direitinho na vertical, muito lentamente.

01/04/2023

Notas a mil

Gosto do podcast A beleza das pequenas coisas, tirando quando o convidado ou convidada se anima de uma atitude especial muito séria e pausada voltada para si mesmo ou mesma, no entanto vale sempre pelo riso magnífico do Bernardo Mendonça.
Voltei a ver Mayday, desastres aéreos. É a única coisa que vejo na televisão, à exceção das notícias e o RAP ao domingo. Não sou maluquinha, aquele programa é que é muito completo, tem técnica, psicologia e comunicação quando não também questões culturais.
Finalmente consegui comprar calças jeans que têm a cintura no lugar certo em vez de nos ombros e o fim das calças nos pés em vez de a meio caminho da perna. Sinto-me muito melhor, até sou capaz de amanhã ir passear a sítios bonitos com elas. 
A conferência de há dias deixou-me tensa tanto tempo ao microfone que ainda me doem músculos principalmente nas costas. 
Fiz uma brevíssima e ridícula incursão no tuiter para experimentar. Visualmente, o ecrã fica poluído com lixo que atrapalha a leitura das duas ou três pessoas que me interessaram. Não. A vida quer ir mais calma e a primavera já começou. 

20/03/2023

Red Band

Comprei na loja do aeroporto, onde se vende livros muito conhecidos, revistas embrulhadas em plástico e porcarias caríssimas, um tubo de pastilhas Red Band, mas as mesmas são castanhinhas. Nunca tinha comprado um tubo de pastilhas Red Band, as quais são very delicious e ainda, acabo de descobrir, boas para a tosse (mas eu não tenho tosse). É o seguinte: quando, há uns tempos, uma senhora no lugar ao meu lado no avião me ofereceu uma pastilha Red Band durante a aproximação à pista, aterrou em mim esta vontadezinha (de um tubo inteiro). De modo que agora já está. Next!

19/03/2023

O animado cãozinho

Esta noite foi a pior desde que há registo pela equipa de monitorização relógio & telefone, ambos espertos. Mas estou de acordo. Estive para adormecer até às três e meia, hora em que olhei para os números luminosos pela última vez antes de ser finalmente capaz de abandonar o estado de vigília. Por isso, de manhã, o arranque foi por partes. Por exemplo, pus-me a andar ou, por outras palavras, fui caminhar. E, como ainda não havia introduzido as planeadas alterações no percurso habitual para fugir às manifestações de intenção de ataque do cão velho, preto, grande e rabugento, avancei por ali fora, continuei em frente! Sim, passei o local onde ultimamente, ao avistar a fera, volto para trás obediente à vontade do bicho e entretanto também à minha porque não me apetece imenso ter a pele rasgada por dentes caninos, nem sequer as calças. Mas como dizia, hoje segui em frente. Não por ter tido um ataque de grande valentia, mas porque o animado cãozinho não estava lá.

16/03/2023

Uitschudden*

Passava meia hora da uma da tarde quando Joop, o vizinho do outro lado da rua, veio cá fora sacudir a toalha de mesa. Tinham acabado de almoçar. A sua mulher, Mattie, já não consegue andar como antes. Tem até uma bicicleta com três rodas. Ou seja, uma tricicleta. Já têm ambos quase noventa anos. Ele continua a arrumar os caixotes do lixo de toda a vizinhança depois de passar o camião que lhes dá a volta com umas pinças mecânicas, enormes, para os esvaziar. Já devo ter contado isto várias vezes, o processo fascina-me um bocado. Adoro ver os vizinhos a tratar do jardim ou a sacudir as migalhas do almoço. Vejo tudo da minha janela do primeiro andar, onde estou em teletrabalho da Holanda para Portugal. Mas no meu computador português passava meia hora do meio dia.

*Sacudir em neerlandês, acabei de aprender

14/03/2023

Quatro galinhas

Hoje caminhei com o chapéu de chuva ora aberto, ora fechado. Fiquei com a mão direita gelada. As luvas tinham ficado em casa.
De vez em quando, sentia um pingo mais grosso e pesado bater-me no ombro. Dizia-me, tu aí. Como se fosse a chuva a caminhar comigo, uma chuva metidinha, fria, ainda cheia de inverno.
Já no último quilómetro, ao passar junto à casa que tem quatro galinhas castanhas no relvado, ouvi, no podcast da Raquel Marinho, a sua convidada contar como salvou da morte a cadela que adotou. Fez-me chorar por dentro do peito.

A minha vida é muito boa, gosto tanto dela. 

13/03/2023

Alterações de percurso

O percurso da caminhada holandesa que faço para cumprir os cinco quilómetros que deviam ser diários, mas não são, inclui uma rua que tem uma só casa. A casa não tem vedação. A demarcar o terreno há relva, num lado, e, no outro, canteiros nus que aguardam a primavera. A rua não está alcatroada, por isso, quando chove, os sulcos profundos que os veículos agrícolas fazem ao circular por ali, enchem-se de lama. Mas não é a lama que ultimamente me faz voltar para trás e encurtar os cinco quilómetros bem medidos. É o cão velho, grande, preto que guarda a casa sem vedação. Dantes, o cão ficava deitado a rosnar baixinho sem se mexer. Mas agora, quando me vê aproximar na estrada, levanta-se do seu poiso de vigia e vem largado a correr, ladrar e rosnar, rouco, na minha direção. O cão está sempre solto e possivelmente é inofensivo, mas eu não consigo passar, tenho medo.
O percurso da minha caminhada holandesa vai portanto sofrer alterações.

12/03/2023

Olá Chat(inho)

Desconfio que a enormidade de visitas que este blogue tem tido ultimamente já não são mero lixo convencional de cliques atirados para ali ao acaso por motores potentes mas sem rumo nenhum de jeito, mas sim – atenção! - o famosíssimo ChatGPT (um qualquer da família serve) que anda a vir aqui frequentemente petiscar assuntos vários para construir as suas rápidas e artificialmente inteligentes respostas. Caso contrário, como explicar tanta visita maluca por dia num singelo e meio-abandonado blogue?

06/03/2023

No comboio

Toda a gente que vejo do meu lugar viaja mergulhada nos respetivos telemóveis, evidentemente. De súbito, o homem asiático à minha frente levanta a cabeça e olha para um ponto no vazio. Parece pensar. Imagino-o informático. Ou talvez engenheiro mecânico, ou engenheiro de sistemas. Sistemas diversos, um pouco misteriosos, mas sistemas. Não o vejo enfermeiro, psicólogo ou advogado. Faço o resto da viagem enumerando mentalmente profissões que não lhe atribuo. Marinheiro, agricultor, padeiro. O homem asiático - talvez chinês, coreano, japonês - conclui a sua reflexão, sorri sozinho no vazio, e regressa ao mundo digital do seu telemóvel. Não notou a minha existência e nunca saberá deste texto. Depois, como eu, sai em Utrecht Centraal para a noite fria, chuvosa. 

05/03/2023

Não cortas as unhas aos gatos?

A minha mãe viu os arranhões na minha testa ficarem mais vermelhos. Disse que eu os esfregava enquanto falava, nervosa. Foi buscar água oxigenada e algodão. Esticou-se para tratar os arranhões. Disse que podiam infetar. Eu ri-me. Não infetam, são superficiais. O algodão molhado refrescou-me as ideias. Perguntou se prefiro betadine. Eu não sei o que disse. Ri-me de novo. Mas ela foi buscar o betadine e mais algodão. Depois disse que a minha testa ficou castanha e que o betadine não era bem betadine, era o produto da marca do Continente, o único existente na altura do coronavírus quando o comprou. 

07/02/2023

Dia de folga

Era domingo e tinha chovido toda a tarde. Quando peguei no carro estacionado debaixo da buganvília sem flores nem folhas, já a noite havia caído. Fiz-me à estrada serra abaixo e Portugal abaixo com destino a Lisboa, onde iria trabalhar presencialmente no dia seguinte. Parei – como tantas vezes – na estação de serviço de Santarém, que é mais ou menos a meio caminho. Ao entrar nas instalações sanitárias, fui recebida por uma quantidade não habitual de sujidade, com falta de papel higiénico e cheiro duvidoso a pairar. Mas ia concentrada em entrar no cubículo que escolhi para o assunto que ali me levou sem tocar nos bordos da sanita com o meu belo e novo casaco compridinho. Em princípio consegui (ainda não estou assim tão gorda, embora quase) e só depois me caiu a ficha, ou seja, me dei conta da situação ali toda esquisita. Não é costume, realmente. O costume é estar o chão limpo, o ar cheirando a detergente de lima-limão ou frescura da montanha e haver papel higiénico. Mas então penso um pouco mais a fundo e batendo com a mão na testa recordo a mim mesma: é dia 1 de janeiro! As pessoas da limpeza (ia escrever senhoras da limpeza) também têm direito a ter este dia de folga!

Saí dali mais contente. As pessoas que limpam as sanitas, o chão e outras porcarias, pelo menos não o fazem no dia 1 de janeiro. E nós, as que não o fazem é nunca, temos oportunidade de sentir a falta do seu trabalho que é tão importante. Essencial. Devia ser um trabalho muito bem pago.

06/02/2023

O puma das neves

Hoje dei boleia à Clara depois do trabalho. A distância que percorremos é tão curta que, se ela caminhasse, chegaria mais depressa à estação. Àquela hora, o rosa crepuscular já no tom da noite, deslizamos devagar na fila compacta, de semáforo em semáforo. Mas como dá para alguns minutos de conversa, eu ofereço a boleia e ela aceita-a. Hoje ia especialmente contente para apanhar o comboio. Mal se sentasse, pegaria no livro que começara a ler de manhã. Perguntou-me se eu o conhecia. É sobre o puma das neves, um felino que vive em terras geladas, muito altas, num lugar que me pareceu inexistente, na China. Houve ainda tempo para ela me mostrar no ecrã do seu telefone como é o puma das neves. Eu estava a imaginá-lo todo preto, mas não. O puma das neves é malhado sobre um fundo de pelo esbranquiçado. Fiquei com vontade de ler o livro. 

(realmente estou no trabalho certo) 


Errata: onde se lê puma deve ler-se pantera.