a voz à solta


Se leio, saio de mim e vou aonde me levam. Se escrevo, saio de mim e vou aonde quero.

02/12/2023

Valeu a espera

Devia com certeza ter chegado um voo de Luanda. Os passageiros com aspeto angolano, cuidado com o que vais dizer, saíam pela abertura no átrio das chegadas, em grupos numerosos, empurrando carros com malas empilhadas até ao ponto imediatamente anterior ao desmoronamento. O natal aproximando-se a alta velocidade e os feriados de dezembro, por junto, são talvez incentivo bastante para que, em Lisboa, aterrem aviões mais cheinhos.
O voo da Saminhas já aterrou há mais de meia hora, mas ela ainda não surgiu. Circulei pela única loja de souvenirs, passando os olhos pelos livros (quase comprei mais uma revista LER, que depois nunca leio até ao fim). Pelo caminho, reparei que, num topo de escaparate, as prateleiras se enchem em exclusivo de Fernando Pessoa. Comprei um mini pacote de bolachas e um sumo e fui instalar - me na beira da rampa a observar os viajantes recém aterrados. O dispositivo inteligente vibra dentro do bolso do meu casaco. São mensagens da minha filha com informação atualizada sobre o seu demoradíssimo desembarque. 
Na enxurrada de gente, vem um português na casa dos trinta a descer a rampa de mochila às costas. Tem ar de informático. De repente, do lado oposto, dispara a correr ao seu encontro, um menino dos seus quatro anos: paaaaaaiiiiiiiiii!!!!! O informático baixa-se para apanhar o gaiato, encaixa-o no tronco, de lado, aperta-o contra si. O garoto envolve com os braços o pescoço do pai, enquanto a mulher que completa o quadro mal consegue cumprimentar o informático. Ao passarem por mim, no meio de beijos energicamente depositados no seu pai, o menino esfrega o pequeno rosto, afastando qualquer coisa ali intrometida que pareceu surpreendê-lo, e eu oiço.
- Então?! - diz o informático a sorrir ao miúdo - estás a chorar?

Observar o reencontro das famílias à beira das chegadas no aeroporto de Lisboa sossega-me o espírito. O amor continua a ser, ali, o maestro principal.

Bombas de água

Máquinas resfolegantes animam canais em edifícios que dormem em banda, cinco de cada vez. Bombeiam toda a noite o líquido desinfetado de bichos mínimos a caminho de misturadoras ou mesmo torneiras.
No silêncio da madrugada, num arredor intenso da capital, estes ruídos metálicos, verticais, são, àquela hora, a minha companhia.
Mas não é para a ilha que quero voltar. 

13/11/2023

E tu, que encontras assim de tão giro no teu caminho?

Quase tropeçava na pegada ecológica de um exemplar de javali. Abrandando a marcha, aproximei até o próprio nariz para ver melhor. E sim senhor, confirmou-se por todos os lados. Depois tirei uma fotografia ao chão de propósito por causa da beleza. 

É que não preciso de black fridays, descontos em cartão, ou de dar a minha opinião. Não pinto as unhas, já agora. Hotéis de luxo, mansões muito modernas onde alma nenhuma entra no sono, passo completamente. A Netflix e isso, também.

Tenho só um bocado de pena de enjoar desta maneira no Flixbus (por falar em flix). É demasiado ondulatória, a rota. 

Mas quase tropeçar na pegada ecológica de um exemplar de javali de manhãzinha cedo com o nevoeiro ali todo, é bastante raro e muito giro. 

Vou mostrar com qualidade:

25/10/2023

Então bom dia

Através da frincha da janela, chega o canto de dois ou três melros. Lá fora, o asfalto da estrada guardada pelo arvoredo onde as aves despertam, está molhado. Não preciso de o ver. Os primeiros habitantes do bairro já saíram de casa para dentro da noite, que ainda dorme, e as suas viaturas rodam sobre a chuva caída.
Mais ao longe, um cão ladra um bocadinho. É mesmo só um bocadinho que ele ladra, por exemplo, não é muito: as coisas são como são. 
Entretanto um autocarro passa vagaroso. 

Ser assim, toda arrancada à cama por uma cólica inesperada e metidinha, tem algumas vantagens. Como aliás quase tudo aquilo que vem e depois vai. 
Então troquei o café por chá e também arranquei mas foi o dia na cozinha.

12/10/2023

Mas bom dia

Lisboa ajustava-se finalmente com força moderada sobre a placa tectónica num tremor de terra da escala de cinquenta euros. Meti-me debaixo de uma mesa do laboratório de ensaios enquanto em redor caíam algumas coisas indistintas. Procurei o dinheiro nos bolsos e sobrevivi mesmo antes de acordar. Lá fora ainda estava escuro. Alcancei os óculos e desci as escadas, liguei o computador. Preparei um café forte e, enquanto a máquina processava a operação com jorros de vapor a subir aos armários da cozinha, retomei o relatório prometido para o dia anterior.

De repente, lembrei-me do nome do autor do livro com o título na placa em azulejo da casa que está para venda. Casa do pó. Mas nunca li o livro e agora está esgotado. 

O telemóvel esperto faz-me cada vez mais infeliz. Apago noventa por cento da informação; já o mundo fora dele é completamente maior. 

Estou a ponderar comprar os livros todos do João Aguiar e ir outra vez ver os Fatias de Cá. Não sei onde ando com esta cabeça. 

27/09/2023

Sempre o mesmo post

A esta hora da manhã, com o despertar dos elementos, devia estar a fazer a caminhada. O céu tinge-se devagarinho de azul claro e os últimos veados recolhem-se para os escuros mais escondidos da floresta de eucaliptos e alguns carvalhos, castanheiros e por vezes pinheiros. Quando, após rodar a chave na porta muito devagar para que o estalido do mecanismo não espantasse a caça, saí para o terraço, ainda vislumbrei três ou quatro a dissiparem-se na frescura com as suas pernas finas, muito elegantes, a correr. A caça mas apenas com os olhos e o espanto que sempre me sobe à cabeça de cada vez que vejo um animal daqueles. Os javalis também têm dado à costa em grandes quantidades, deixando o terreno aqui ao lado completamente revolvido. Ontem à noite, e anteontem, era toda uma família mesmo junto à casa. Punham-se em aflição quando nos aproximávamos e corriam doidos, ali muito, a fugir para vários lados ao mesmo tempo. Os javalis são um bocado desorganizados. Adoro isto imenso, mas por outro lado, a coragem para ir caminhar no escorvar do dia e da luz no meio da bicharada vai-me faltando. Portanto fico em casa a engordar mais um bocado.

Tenho então o projeto de comprar uma passadeira para ir passando o inverno (passo o termo) a fazer caminhadas sem sair do mesmo sítio e sem me rodear de barulhos no meio da vegetação, acompanhados de roncs completamente sugestivos mesmo ao pé de mim.

Mas ainda não percebi se gosto do livro que ando a ler muito depressa. É de uma autora islandesa cujo nome começa com Yrsa e o resto é uma espécie de Dvttoril£oredi§tºr. No entanto, foi exatamente por ser islandesa que me deu para isto, tenho curiosidade. Acho que a Islândia é um lugar onde nunca quererei ir, está cheio de mistérios cavernosos, tristeza, escuridão, frio e morte (talvez não devesse ter lido o Desumanização do querido Valter). O livro é supostamente do meu estilo despreferido: thriller. Por isso não sei se gosto ou se no fim chorarei os vinte e tal euros gastos na obra, comprada na Bertrand do Vasco da Gama, numa tarde de fraqueza.

E agora vou teletrabalhar, que o dia já nasceu todo.

13/08/2023

Caputh

Quando, nas casas de banho dos quartos de hotel, os secadores de cabelo já não precisarem de ter o seu cabo enfiado pela parede adentro, à prova de roubo por hóspedes com falta de secadores de cabelo na sua pobrezinha vida, o mundo será possivelmente justo.

O empregado do restaurante do hotel, jovem imigrante original da Indonésia, explicou - nos que, no seu país, as rezas do dia começam às cinco horas da manhã por uma questão de disciplina. (e depois, respondendo à minha pergunta, disse que preferia esse seu país para viver mas é este lugar onde estamos, nas imediações de Berlim, que lhe permite ter uma vida decente, um trabalho, um salário)

Na casa de verão de Einstein, em Caputh, a sala onde ele trabalhava e onde eu me sentei à secretária para escrever no livro de visitas, é aquela que fica mais distante da cozinha, a zona então mais barulhenta da casa.

12/08/2023

Estação de serviço

Era uma família de quatro: pai, mãe, e duas crianças. Comiam o seu almoço debaixo de um chapéu de sol cujo cabo atravessava o centro geométrico da mesa de plástico na zona exterior da estação de serviço. Não pude entender uma palavra do seu alemão, claro, mas que estavam alegres era evidente. A três metros de distância, o nosso carro carregava a bateria enquanto nós descansávamos da viagem. Tangente ao recinto passa a autoestrada onde as filas de automóveis escorriam vagarosamente, interrompidas por numerosos veículos pesados, estes quase todos de matrícula polaca, apesar de ser sábado. A chuva intensa havia finalmente cessado dando lugar a uma tarde quente e húmida. O almoço da família de quatro está servido em caixas de cartão impregnado de gordura. Salsichas de comprimento grandinho e diâmetro também, envoltas numa espessa camada de molho de tomate escorrendo por todos os lados e pelos dedos dos meninos, tudo muito acompanhado de animadas doses de batatas fritas também elas  relativamente gordinhas.

10/08/2023

Bisando

Ainda com o café ao lado, pego no livro da Filipa Leal e abro-o de alto a baixo. Muito devagar, reviro-lhe quatro ou cinco entranhas contíguas, diz ela que projetos políticos. Com c, creio, projectos políticos.
Mesmo assim, apesar do calor das minhas mãos, apesar da minha avidez, as páginas sentem-se estrangeiras, como se tivessem muito frio. O livro fecha-se então de um lado e do outro. E eu, transversal à manhãzinha de verão, continuo a beber o café completamente. 

15/07/2023

Café e leitura

Lembrei-me ontem, no decorrer da tarde e do concerto para piano número dois de Rachmaninoff, de lançar um desafio em redor: expliquem lá, meus queridos, uma situação vibrante durante meia horinha sem utilizarem a muito palavra imagina. 

Entretanto corri aos correios para levantar os dois livros de Direito que contrapesam um garrafão cheinho de litros de água e que surpreendentemente anseio por ler. Desconfio que adicionalmente serão capazes de engrandecer o meu pobrezito músculo de braços.

Com a chuva que por fim cai em cheio sobre o vale após toda uma noite de ameaças, a manhã claro que já vai plena só em café e leitura.

(mas ainda não percebi a cena medonha dos concertos de piano em palco pejadinho de velas acesas - a ideia não seria ouvir música em paz?)

(Figueiró dos Vinhos ou Figueirinho dos Vós, as you wish - reprodução de uma obra de José Malhoa, 1915, por Julio Anaya Cabanding)
(pronto, pronto) 

08/07/2023

Dois pedaços bicudos da sua própria tablete

No fim, para a sobremesa, disse ao empregado que queria algo de chocolate mas maneirinho, nada enorme como é costume naquele restaurante de estrada para camionistas de veículos muito pesados passando velozes com inscrições do género “o seu parceiro na zzzzzzzzz” a última parte, aquela em que iríamos saber em que ramo da tecnologia o veículo de grande porte é nosso parceiro, não se consegue ler, porque o camiãozão entretanto já desapareceu da nossa vista cansada, mas dizia eu que revelei os meus apetites por algo de chocolate mas de tamanho adequado à minha envergadura, ao que o empregado fez que sim com a cabeça e afastou-se com ar de quem sabe perfeitamente qual a sobremesa ideal para mim. Surgiu com dois pedaços bicudos de chocolate amargo com caramelo e pepitas de sal tirados da sua própria tablete (e não incluídos na conta). As coisas que acontecem em Penela, dois.

Nem sempre valem pela comidinha

Um casal de meia idade com ar de não-penelenses, ela de cabelo louro pintado e ele de cabelo branco farto, muito penteado, ambos bronzeados e bem apessoados, sentou-se na mesa atrás de nós. Encomendaram de véspera o famoso bacalhau à Pastor segundo informação veiculada pelo empregado, prato que consiste numa posta do tamanho de um tabuleiro de xadrez mas com o triplo da espessura do mesmo, o bacalhau soterrado por uma camada de maionese da ordem dos centímetros. O empregado informou-nos ainda, enquanto pagávamos a conta, que o casal é italiano. Vieram recentemente viver para cá e trouxeram os seus, atenção, estais sentados? Sim? Então vamos lá: os seus dezassete (17) cães e oito (8) gatos de Itália. Diz ainda o nosso informador que alugaram um táxi italiano daqueles assim (e faz uns gestos com os braços que parecem indicar um táxi muito comprido) para trazer a canzarrada toda e presumo que a gataria também - os gatos devem ter adorado a viagem – até aqui. As coisas que acontecem em Penela.

19/06/2023

Bibió

As férias de verão da nossa adolescência eram passadas junto às escarpas que se estendiam entre a estrada para as Azenhas do Mar e a maré revolta e salgada lá em baixo a bater nas rochas. O sol da tarde baixava desse lado e, ao contrário das praias do Algarve, presenteava-nos o espírito, os olhos, as bicicletas, as gaivotas e os nossos sonhos de miúdas, com o espetáculo de se pôr no mar. Víamo-lo da janela da sala de jantar. O nosso avô habitualmente não jantava. Suponho que não lhe apetecia sopa, bifes com arroz ou peixe se calhar frito ou cozidinho. Preferia pegar no carro depois do nosso jantar e ir ao café comer uma tosta mista sempre, mas sempre, sem manteiga.
Às vezes as minhas irmãs e eu íamos com ele, uma, duas de nós, ou mesmo todas. Sentavamo-nos a uma mesa do café que ficava nas arcadas das lojas da Praia das Maçãs. O avô pedia a sua tosta mista sem manteiga e eu sentia-me sempre muito feliz. Depois perguntava o que nós queríamos tomar. Normalmente, eu queria uma Coca-Cola. Não me lembro o que pediam as minhas irmãs. Só me lembro da intensa felicidade que sentia nesses momentos. E então respondia ao meu avô, voltando-me para o empregado: era uma Coca-Cola sem manteiga, se faz favor. A gracinha intensificava aquela sensação muito boa mas talvez alguma das manas dissesse 'parva' e revirasse os olhos um bocadinho, a fingir-se farta de mim. (que tempos!) 

Há dias, no almoço com os meus colegas, a propósito de qualquer coisa que ali surgiu, contei-lhes esta pequena história da Coca-Cola sem manteiga, omitindo a parte da felicidade (essa fica entre nós). É que não era alegria nem boa-disposição o que eu sentia, era mesmo uma felicidade intensa.
Parecida com aquela que me vem misteriosamente, instala-se toda e depois fica a latejar com certa doçura imenso tempo, sempre que escrevo neste blogue que continua vivo embora um bocado ferrugento.

05/06/2023

Um garfo!

Quando saí do cliente já passava um bocadinho das seis horas. Abri a porta do carro ao sol de junho, que aqueceu ali todo o ambiente por fora e por dentro, especialmente por dentro. O casaco foi despejado sobre o banco de trás o mais depressa possível, as mangas arregaçadas e as mãos metidas ao volante, claro, mas só depois de espetar o dedo no botão com o AC inscrito. Senti um alívio suave e estaladiço com pepitas de chocalhos de alegria pelo caminho de regresso. Não tanto pelo refrescar da envolvente como pelo sossegar de uma breve missão cumprida e alguns feriados no horizonte. Assaltou-me, ali ao quilómetro vinte e dois, uma vontade aguda de beber uma cerveja deliciosa agarrada a um livro acabadinho de comprar na feira. Mas musiquei o habitáculo com qualquer coisa nova respeitante a portas giratórias, uma oferta da Antena 1.

À noite virei-me para a televisão numa de já-que-aqui-chegámos e para encher com chouriços a paz habitual. Foi o suficiente para bater os olhos num anúncio de comida para gatos exibindo um prato com pedaços suculentos, cozinhados lentamente (disseram), em molho, e um garfo disposto ao lado do referido prato. Com certeza isto é capaz de serem se calhar ideias completamente espetaculares da inteligência artificial.

03/06/2023

Mais um topo de telhado (atirado ao rio)

Foi uma noite abençoada. Dormida até às 9h50 de acordo com a eletrónica de que me faço munir durante a noite. Nove e cinquenta, para o caso de os algarismos impressos não conseguirem fazer solos com o efeito pretendido. É que ontem escarafunchei os pés dentro de um par de elegantes sapatos de doze andares e por isso terrivelmente difíceis de domar, seja na calçada portuguesa seja lá para onde eles me levem. E isto mesmo com o uber a deixar-me ali a roçar os degraus da entrada do lugar doido que começa numas escadas estafadíssimas pelo tempo mas dispostas a levar-nos até ao – adivinhar em coro – sim: topo de telhado!! Portanto havia que dormir imenso para que os pezinhos, (não na areia, porém) aborrecidíssimos com o efeito dos sapatos verticalmente caprichosos dançando Tina Turner (you really were simply the best) à vez na noite muito a cair para cima do Tejo, pudessem recuperar praticamente toda a sua forma já que hoje terão de dar o seu melhorzinho na belísisma festa da minha também abençoada irmã.

13/05/2023

Ou a ideia é transformar quem leia qualquer coisinha futura em atrasadinhos totais?

A cada notícia a urgência intensifica-se. Há que comprar o maior número possível de livros o quanto antes. Livros que ainda trazem os adjetivos inteiros, as possíveis ofensas, as cenas maradas, livros completos, autênticos. Não submetidos aos atuais critérios de censura, frutos de uma surpreendente ausência de cérebros capazes de pensar. Poucas coisas me entristecem tanto como a amputação dos livros que parece querer anunciar-se no horizonte.

Um bocadinho mais de inteligência, por favor. A sério, vá lá.



06/05/2023

Verde pistachio

De cabelo grisalho, ténis, meias e saia curta, a mulher sentada sozinha a uma mesa escrevia num caderno. À sua frente não se vê um jantar, apenas um copo de vinho tinto. A caneta com que escreve, de um verde pistachio, lembra a lapiseira de modelo famoso da Caran d'Ache. Esteve o tempo todo a escrever, só ficava suspensa, em pausa, quando o fadista cantava.
Tive muita curiosidade ali, toda a noite, na mesa ao lado, mas em vez de lhe fazer perguntas perturbando a sua escrita, fiquei somente a ouvir as intensas canções de Coimbra, todas tão bonitas.

Amena corçaqueira

Como queria pegar ao trabalho o mais cedo possível, fui caminhar ainda o relógio andava pelas seis e tal, quase sete. Já fora da aldeia, onde a manhã se encheria de quietude não fosse a primaveril sinfonia dos pássaros, num tímido ramal de terra e muita erva fresca a estender-se a partir do caminho principal na direção do vale, está uma corça macho de porte bastante jeitoso e galhardas hastes, ali toda a olhar para mim como se eu fosse um bicho. Parei a apreciar-lhe a beleza natural quase sem respirar, mas o bicho, ele sim, achou melhor dar meia volta e correr para dentro do bosque de eucaliptos o mais depressa possível, não fosse eu trazer algumas ideias maléficas. Talvez tenha ido chamar reforços, porque muitos minutos depois, quando eu já venho no regresso, estão três exemplares estacionados no meio do tal caminho principal, utilizado pelo carro do padeiro inclusive, ali como se em amena corçaqueira, que é a cavaqueira das corças. De novo parei para observar o espetáculo que me estava sendo dado pela segunda vez na mesma manhã e agora em triplicado, mas os atores optaram por abandonar o teatro das operações e correram outra vez o mais depressa possível para dentro do bosque de eucaliptos onde um ou outro carvalho ainda marca presença no meio da paisagem.

(benditos aqueles que, após os cervídeos terem sido extintos pelos caçadores no final do século passado, introduziram uma centena destes animais na serra da Lousã e agora são aos milhares e encantam-me muito - não sei a quem devo agradecer, mas gostava muito)

27/04/2023

O verso (sem meta por favor)

Hoje é noite de Maydays no canal National Geographic. Instalei-me toda no sofá para a sessão de aprendizagem, mas os episódios são repetidos (ainda bem). Volto-me então para este pequeno e levezinho blogue, ao contrário de mim. 
Não comi cebolas inteiras com casca, nem bebi a cerveja por uma palhinha azul de plástico. Não continuei a ouvir a entrevista à Susana Peralta depois de ela dizer um disparate do tamanho de um elefante montado numa girafa. Não fui para o trabalho a pé nem não fiz o exercício de sete minutos no quarto.
Não aprecio as declarações do que não se é. Pelo contrário.

25/04/2023

Feira popular

Acabei finalmente “Os irmãos Karamázov” de Dostoiévski, primeira parte. Falta a segunda, que é maiorzinha. Mas vai ficar para depois. “Os irmãos Karamázov” é uma obra muito muito à Dostoiévski, maravilhosa e densíssima. Algumas passagens de filosofia sobre a religião aborreceram-me imenso, mas não saltei nada. O problema é meu, uma vez que também tenho a minha dose de feira popular e anúncios de televisão. Peguei, entretanto, em mais um da Clara Pinto Correia, não sei quê dos caminhos. Os livros dela têm títulos ocos que nem eu memorizo com facilidade e capas muito feias, mas são tão bons.

22/04/2023

Pão sem manteiga

Quando, pouco passava das seis horas, o dispositivo retangular a que chamo telemóvel (senhores, arranjar nova designação) me caiu na cara dando-me o flanco lateral, nem a capinha transparente, flexível e algo amortecedora, comprada no chinês de Penela, me aliviou a dor no osso facial. Normalmente este género de quedas próprias das leituras matinais na caminha são muito menos acutilantes.

Mas acabei de ler o artigo do Expresso, li outros dois do Página Um (hoje o Tiago Franco desiludiu-me um bocado ali no remate final), e levantei-me. Pela janela via-se que a noite já tinha saído, mas o dia ainda estava a tentar emergir das nuvens. Vesti o grosso robe de chambre cor de fumo e fiz-me à escada. Na cozinha preparei um café de filtro e meio pãozinho de ontem. Torrei-o ligeiramente e meti-lhe dentro uma elegante fatia de queijo light. Manteiga nem pensar, evidentemente. Lá fora sei que está frio. Abro o trinco devagar, prolongando o estalido para não espantar algum veado que pudesse andar por ali a alimentar-se de erva fresca e saio para o terraço. O ar está carregado de humidade e as cadeiras ainda estão molhadas. Veados não se vê nenhum, devia ter vindo mais cedo. Passo os olhos pelo vale envolto em neblina onde os pássaros chilreiam à falta de primavera. A minha rica ideia de tomar ali o café da manhã desvaneceu-se para dentro. Torno a fechar a porta devagar. Ao subir a escada, noto que, agarrado ao vidro da janela alta, do lado de fora, está um grande caracol de antenas no ar seguindo direitinho na vertical, muito lentamente.

01/04/2023

Notas a mil

Gosto do podcast A beleza das pequenas coisas, tirando quando o convidado ou convidada se anima de uma atitude especial muito séria e pausada voltada para si mesmo ou mesma, no entanto vale sempre pelo riso magnífico do Bernardo Mendonça.
Voltei a ver Mayday, desastres aéreos. É a única coisa que vejo na televisão, à exceção das notícias e o RAP ao domingo. Não sou maluquinha, aquele programa é que é muito completo, tem técnica, psicologia e comunicação quando não também questões culturais.
Finalmente consegui comprar calças jeans que têm a cintura no lugar certo em vez de nos ombros e o fim das calças nos pés em vez de a meio caminho da perna. Sinto-me muito melhor, até sou capaz de amanhã ir passear a sítios bonitos com elas. 
A conferência de há dias deixou-me tensa tanto tempo ao microfone que ainda me doem músculos principalmente nas costas. 
Fiz uma brevíssima e ridícula incursão no tuiter para experimentar. Visualmente, o ecrã fica poluído com lixo que atrapalha a leitura das duas ou três pessoas que me interessaram. Não. A vida quer ir mais calma e a primavera já começou. 

20/03/2023

Red Band

Comprei na loja do aeroporto, onde se vende livros muito conhecidos, revistas embrulhadas em plástico e porcarias caríssimas, um tubo de pastilhas Red Band, mas as mesmas são castanhinhas. Nunca tinha comprado um tubo de pastilhas Red Band, as quais são very delicious e ainda, acabo de descobrir, boas para a tosse (mas eu não tenho tosse). É o seguinte: quando, há uns tempos, uma senhora no lugar ao meu lado no avião me ofereceu uma pastilha Red Band durante a aproximação à pista, aterrou em mim esta vontadezinha (de um tubo inteiro). De modo que agora já está. Next!

19/03/2023

O animado cãozinho

Esta noite foi a pior desde que há registo pela equipa de monitorização relógio & telefone, ambos espertos. Mas estou de acordo. Estive para adormecer até às três e meia, hora em que olhei para os números luminosos pela última vez antes de ser finalmente capaz de abandonar o estado de vigília. Por isso, de manhã, o arranque foi por partes. Por exemplo, pus-me a andar ou, por outras palavras, fui caminhar. E, como ainda não havia introduzido as planeadas alterações no percurso habitual para fugir às manifestações de intenção de ataque do cão velho, preto, grande e rabugento, avancei por ali fora, continuei em frente! Sim, passei o local onde ultimamente, ao avistar a fera, volto para trás obediente à vontade do bicho e entretanto também à minha porque não me apetece imenso ter a pele rasgada por dentes caninos, nem sequer as calças. Mas como dizia, hoje segui em frente. Não por ter tido um ataque de grande valentia, mas porque o animado cãozinho não estava lá.

16/03/2023

Uitschudden*

Passava meia hora da uma da tarde quando Joop, o vizinho do outro lado da rua, veio cá fora sacudir a toalha de mesa. Tinham acabado de almoçar. A sua mulher, Mattie, já não consegue andar como antes. Tem até uma bicicleta com três rodas. Ou seja, uma tricicleta. Já têm ambos quase noventa anos. Ele continua a arrumar os caixotes do lixo de toda a vizinhança depois de passar o camião que lhes dá a volta com umas pinças mecânicas, enormes, para os esvaziar. Já devo ter contado isto várias vezes, o processo fascina-me um bocado. Adoro ver os vizinhos a tratar do jardim ou a sacudir as migalhas do almoço. Vejo tudo da minha janela do primeiro andar, onde estou em teletrabalho da Holanda para Portugal. Mas no meu computador português passava meia hora do meio dia.

*Sacudir em neerlandês, acabei de aprender

14/03/2023

Quatro galinhas

Hoje caminhei com o chapéu de chuva ora aberto, ora fechado. Fiquei com a mão direita gelada. As luvas tinham ficado em casa.
De vez em quando, sentia um pingo mais grosso e pesado bater-me no ombro. Dizia-me, tu aí. Como se fosse a chuva a caminhar comigo, uma chuva metidinha, fria, ainda cheia de inverno.
Já no último quilómetro, ao passar junto à casa que tem quatro galinhas castanhas no relvado, ouvi, no podcast da Raquel Marinho, a sua convidada contar como salvou da morte a cadela que adotou. Fez-me chorar por dentro do peito.

A minha vida é muito boa, gosto tanto dela. 

13/03/2023

Alterações de percurso

O percurso da caminhada holandesa que faço para cumprir os cinco quilómetros que deviam ser diários, mas não são, inclui uma rua que tem uma só casa. A casa não tem vedação. A demarcar o terreno há relva, num lado, e, no outro, canteiros nus que aguardam a primavera. A rua não está alcatroada, por isso, quando chove, os sulcos profundos que os veículos agrícolas fazem ao circular por ali, enchem-se de lama. Mas não é a lama que ultimamente me faz voltar para trás e encurtar os cinco quilómetros bem medidos. É o cão velho, grande, preto que guarda a casa sem vedação. Dantes, o cão ficava deitado a rosnar baixinho sem se mexer. Mas agora, quando me vê aproximar na estrada, levanta-se do seu poiso de vigia e vem largado a correr, ladrar e rosnar, rouco, na minha direção. O cão está sempre solto e possivelmente é inofensivo, mas eu não consigo passar, tenho medo.
O percurso da minha caminhada holandesa vai portanto sofrer alterações.

12/03/2023

Olá Chat(inho)

Desconfio que a enormidade de visitas que este blogue tem tido ultimamente já não são mero lixo convencional de cliques atirados para ali ao acaso por motores potentes mas sem rumo nenhum de jeito, mas sim – atenção! - o famosíssimo ChatGPT (um qualquer da família serve) que anda a vir aqui frequentemente petiscar assuntos vários para construir as suas rápidas e artificialmente inteligentes respostas. Caso contrário, como explicar tanta visita maluca por dia num singelo e meio-abandonado blogue?

06/03/2023

No comboio

Toda a gente que vejo do meu lugar viaja mergulhada nos respetivos telemóveis, evidentemente. De súbito, o homem asiático à minha frente levanta a cabeça e olha para um ponto no vazio. Parece pensar. Imagino-o informático. Ou talvez engenheiro mecânico, ou engenheiro de sistemas. Sistemas diversos, um pouco misteriosos, mas sistemas. Não o vejo enfermeiro, psicólogo ou advogado. Faço o resto da viagem enumerando mentalmente profissões que não lhe atribuo. Marinheiro, agricultor, padeiro. O homem asiático - talvez chinês, coreano, japonês - conclui a sua reflexão, sorri sozinho no vazio, e regressa ao mundo digital do seu telemóvel. Não notou a minha existência e nunca saberá deste texto. Depois, como eu, sai em Utrecht Centraal para a noite fria, chuvosa. 

05/03/2023

Não cortas as unhas aos gatos?

A minha mãe viu os arranhões na minha testa ficarem mais vermelhos. Disse que eu os esfregava enquanto falava, nervosa. Foi buscar água oxigenada e algodão. Esticou-se para tratar os arranhões. Disse que podiam infetar. Eu ri-me. Não infetam, são superficiais. O algodão molhado refrescou-me as ideias. Perguntou se prefiro betadine. Eu não sei o que disse. Ri-me de novo. Mas ela foi buscar o betadine e mais algodão. Depois disse que a minha testa ficou castanha e que o betadine não era bem betadine, era o produto da marca do Continente, o único existente na altura do coronavírus quando o comprou. 

07/02/2023

Dia de folga

Era domingo e tinha chovido toda a tarde. Quando peguei no carro estacionado debaixo da buganvília sem flores nem folhas, já a noite havia caído. Fiz-me à estrada serra abaixo e Portugal abaixo com destino a Lisboa, onde iria trabalhar presencialmente no dia seguinte. Parei – como tantas vezes – na estação de serviço de Santarém, que é mais ou menos a meio caminho. Ao entrar nas instalações sanitárias, fui recebida por uma quantidade não habitual de sujidade, com falta de papel higiénico e cheiro duvidoso a pairar. Mas ia concentrada em entrar no cubículo que escolhi para o assunto que ali me levou sem tocar nos bordos da sanita com o meu belo e novo casaco compridinho. Em princípio consegui (ainda não estou assim tão gorda, embora quase) e só depois me caiu a ficha, ou seja, me dei conta da situação ali toda esquisita. Não é costume, realmente. O costume é estar o chão limpo, o ar cheirando a detergente de lima-limão ou frescura da montanha e haver papel higiénico. Mas então penso um pouco mais a fundo e batendo com a mão na testa recordo a mim mesma: é dia 1 de janeiro! As pessoas da limpeza (ia escrever senhoras da limpeza) também têm direito a ter este dia de folga!

Saí dali mais contente. As pessoas que limpam as sanitas, o chão e outras porcarias, pelo menos não o fazem no dia 1 de janeiro. E nós, as que não o fazem é nunca, temos oportunidade de sentir a falta do seu trabalho que é tão importante. Essencial. Devia ser um trabalho muito bem pago.

06/02/2023

O puma das neves

Hoje dei boleia à Clara depois do trabalho. A distância que percorremos é tão curta que, se ela caminhasse, chegaria mais depressa à estação. Àquela hora, o rosa crepuscular já no tom da noite, deslizamos devagar na fila compacta, de semáforo em semáforo. Mas como dá para alguns minutos de conversa, eu ofereço a boleia e ela aceita-a. Hoje ia especialmente contente para apanhar o comboio. Mal se sentasse, pegaria no livro que começara a ler de manhã. Perguntou-me se eu o conhecia. É sobre o puma das neves, um felino que vive em terras geladas, muito altas, num lugar que me pareceu inexistente, na China. Houve ainda tempo para ela me mostrar no ecrã do seu telefone como é o puma das neves. Eu estava a imaginá-lo todo preto, mas não. O puma das neves é malhado sobre um fundo de pelo esbranquiçado. Fiquei com vontade de ler o livro. 

(realmente estou no trabalho certo) 


Errata: onde se lê puma deve ler-se pantera.